domingo, 25 de março de 2007

Salve, Zidane!

Devido às circunstâncias, decido publicar aqui um texto escrito há já algum tempo, achando que esta era a altura certa para o fazer. Não é outro ponto de vista sobre o mesmo assunto, nem uma atestação do ponto de vista do texto anterior, mas uma confidência pessoal sobre o assunto levantado pelo Gonçalo. Como tal, deve ser lido independemente do texto anterior, ainda que com ele partilhe as mesmas certezas.

Esteve Kafka em Santo Tirso? Tudo indica que não. Mas pareceu-me uma forma suficientemente absurda de começar um texto sobre Deus. Quer dizer, não é sobre Deus, é sobre Zidane, mas vai dar ao mesmo. Aproveitando que falei em Kafka, depois de se ler o autor checo, fica-se certamente com a ideia: “Vou-me entregar à arte!” Ou à arte ou à droga. Se bem que a droga não faz tanto mal. Em Kafka, o mundo que rodeia a personagem central é profundamente absurdo. Tudo o que envolve o protagonista é incompreensivelmente antagónico àquilo que ele é e nada do que faça ou pense será entendido. Esse homem, o artista por excelência, para quem todos os outros são absurdos, está acima dos outros: é o único ser verdadeiramente livre, ainda que nada lhe seja consentido. Contudo, de outro ponto de vista, para o mundo é o protagonista que é absurdo, pois é ele quem está em desequilíbrio com o que o rodeia, é ele quem não se adequa à norma, é ele quem é o louco. Para o leitor, absurdo é eu estar a escrever sobre o absurdo. Talvez seja. Ainda assim, parece-me que absurdo é tanto o que é absurdo como o que não é absurdo, dependendo da perspectiva. E, perante isto, pergunta o leitor: Andas nos copos? Nem por isso. A verdade é que tudo isto tem algum sentido. Isto é, há uns minutos, tinha algum sentido. Querem que conte uma história? Tudo bem, não conto. Pego então na já mítica cabeçada de Zidane ao italiano Materazzi, durante o prolongamento da final do campeonato do mundo de futebol, gesto com que o francês terminou a sua áurea carreira de jogador profissional. À excepção de um ou outro pateta, o público foi de opinião que o gesto violento de Zidane envergonhou o desporto e manchou a sua despedida enquanto futebolista. Dizem esses iluminados que Zidane, cuja despedida do futebol poderia coincidir com a gloriosa conquista de mais um campeonato mundial, conquista essa, que, a realizar-se, se deveria quase exclusivamente à genialidade de que era possuidor, traiu-se a si próprio e aos que o idolatravam, ao perder a cabeça. Para esses mesmos seres inteligentíssimos, nada de mais glorioso haveria que terminar a carreira erguendo a taça, de sorriso no rosto. Para essa gente de inomináveis qualidades, glória é apenas nome de mulher. Para esses doutos senhores, a vida é um prazer tão grande como um rebuçado de mentol. Talvez o mundo se vergasse momentaneamente aos pés de Zidane, se tal acontecesse, e talvez, mesmo, ninguém lhe roubasse a conquista da imortalidade, se conduzisse a França ao segundo título mundial. Talvez… Mas basta ao génio a colheita de todos os triunfos? Ou será a glória mais que carimbar o nome entre os ilustres triunfadores? Para aqueles que repetem, de peito feito, que o acto de Zidane lhe subtrai valor, as minhas sinceras saudações pela lucidez de espírito… Não há nada como ignorar a arte, basear-se em ideais pré-definidos ou ajuizar acções pelo grau de catolicismo que transportam para se poder viver em paz… A todos os outros que, estupidamente, se curvam ainda ante o génio do francês: “Tenham vergonha, pá!” Então o homem dá uma cabeçada num companheiro de profissão, deixa os seus ao abandono, passando ingloriamente ao lado da taça que deveria levantar, desencadeia a derrota da sua selecção e a decepção de uma nação, e ainda assim veneram-no?

Fechemos agora os olhos às aparências e finjamos que somos dotados, afinal, de alguma inteligência. O verdadeiro génio não tem que prestar satisfações. Ao cabecear o adversário, violentando todas as regras de conduta da sociedade e ignorando o prejuízo que tal irreflexão acarretaria, Zidane completou-se. Foi como que afirmar: “Se eu quiser, sou campeão do mundo, se não quiser, não sou.” E todos aqueles que depositavam esperanças nele, bem como os que torciam para que ele falhasse, ficaram de repente à mercê da sua vontade. Com um simples gesto, Zidane abraçou o céu. Quem recorda, hoje, os italianos a festejarem o título, ou os gauleses cabisbaixos ante a final perdida? A única coisa que perdurará na memória das pessoas, bem como nos anais da História que contarão às gerações que virão depois de nós, são os segundos dramáticos que acompanharam a saída de Zidane do relvado, caminhando decidido para o balneário enquanto passava ao lado do troféu mais importante do mundo sem lhe lançar o olhar. Só isso restará. Por que nos compraz a figura de Hamlet, se matou a família toda antes de se suicidar? Se Napoleão, enquanto líder de um exército, pode ser responsabilizado pela morte de tantos soldados inimigos e civis inocentes, por que razão é lembrado como um génio militar? Estará o génio acima dos outros homens, acima da moral, da lei?… Para certos loucos, a resposta não é difícil. A única coisa que prende o génio à terra é a expressão corpórea da sua alma. Ignorar o mundo – eis a expressão máxima do talento do homem. Zidane não se envileceu; perfez-se! Ignorar o troféu e a glória humana, a fé com que alimentava os que acreditavam nele e o desafecto dos que eram contra ele, abandonar tudo o que era humano em si, escapando à modorra do mundo e libertando-se totalmente – eis o que o lhe perpetuará a fama… Porém, é inútil pedir que o vulgo compreenda o génio. Tornar-se absurdo, à vista dos outros, é o preço a pagar por se ser diferente… E como os protagonistas de Kafka, Zidane será eternamente vaiado pelos néscios. Como Gregor Samsa, será visto como um insecto frágil, que os homens medíocres não são capazes de compreender, mas que podem aniquilar se lhe ignorarem a existência. Ao mundo é sempre mais fácil ignorar o que não percebe. Portanto, aos olhos do mundo, como Joseph K, Zidane morreu “como um cão”. Mas, tal como o protagonista kafkiano, perdurará, por essa mesma razão, na eternidade… Salve, Zidane!

9 comentários:

Anónimo disse...

Para que não seja mal interpretado quero frisar que Zidade é para mim, sem sobra de dúvida, o melhor jogador dos últimos 10 ou 15 anos, mas já o era antes da cabeçada a Materazzi e continuou depois de igual forma. No entanto talvez por ser apenas uma pessoa comum e incapaz de reconhecer um génio, não consigo aplaudir uma cabeçada noutro jogador, quer a cabeçada seja dada pelo Zidane, quer por outro jogador qualquer!! A mesma cabeçada dada por qualquer outro jogador, não tenho dúvida que esse seria criticado por qualquer pessoa, uma vez que não me lembro de ver alguém aplaudir uma agressão. No entanto pelos vistos Zidade por ser quem foi/é tem direitos especiais, quem sabe numa próxima oportunidade dê um tiro em alguém e estejam lá pessoas capazes de aplaudir a sua genialidade... Para mim qualquer pessoa por mais genial que o seja não conquista direitos especiais. A referência a Napoleão parece-me adequada, como seria a Hitler, no entanto qualquer pessoa consegue criticar os actos de tais pessoas, além de os poderem considerar estrategas geniais.
Zidade é e será sempre um génio, nunca precisou de agredir ninguém para o ser nem para ser reconhecido como tal.

Apesar de não concordar com as palmas a Zidade pela cabeçada, concordo com quase tudo o que tem sido dito neste blog, parabéns pelo blog tem bastante qualidade.

Nuno disse...

Ninguém aplaudiu a cabeçada! O acto em si é de reconhecida selvajaria. O que foi aplaudido foi o génio de Zidane. E a cabeçada, embora condenável, tem com a genialidade de Zidane uma relação causal. Sem ela, Zidane talvez não se cumprisse o génio que manifestamente foi. Aquele momento foi o canto do cisne. Independentemente de ser um acto de bondade ou um acto de maldade. Zidane, ao fazer aquilo, disse ao mundo: "Vejam, estão nas minhas mãos! Poderei escolher ser campeão, mas também poderei escolher não sê-lo." Sem aquele feito, poderia perder a final ingloriamente ou ganhá-la, mas talvez nunca afirmasse, tão peremptoriamente, a sua superioridade.

Claro que se fosse outro jogador, aquilo teria sido só uma agressão estúpida e irreflectida. Mas foi Zidane. Aquele que teve uma carreira ímpar. Aquele que conduziu a França ao primeiro campeonato do mundo e ao campeonato da europa. E, sobretudo, aquele que, quase sozinho, permitiu que todos os seus compatriotas pudessem sonhar com o segundo título mundial. Ninguém pode acusá-lo de ter desfeito esperanças ou de ter desiludido os que confiavam nele. As esperanças e as ilusões que terá destruído já tinham sido criadas por ele. Eram dele, em primeiro lugar. Como tal, ele era o único a quem um acto daqueles pudesse ser visto como mais do que uma agressão. E eu vejo-o como uma representação inequívoca da grandeza do génio.

Ninguém afirma que Zidane foi mal expulso. À luz das regras do jogo, não tem direitos especiais. Agrediu, foi expulso. E bem expulso. Eticamente, o acto também é reprovável. Também ninguém afirma que ele fez bem em fazer aquilo. Ninguém disse que o Zidane era perfeito. Aliás, o génio nunca é perfeito. É até a sua imperfeição que lhe possibilita a genialidade. Aquilo que se afirma, isso sim, é que a agressão (aquela, em particular) é uma manifestação do génio. Porquê? Porque, além de uma agressão, aquele acto foi essencialmente uma prova de que ele, Zidane, não tinha que se vergar ao peso das regras do jogo ou mesmo da moral humana para ser, ainda assim, um ser de excepção. Aquilo que Zidane provou, ao cabecear Materazzi de forma irreflectida, foi a sua excepcionalidade. E mais nada. Não se defende que Zidane tivesse direitos especiais, ainda que isso pudesse ser debatido. O que se defende é que, tendo os mesmos direitos que os outros, só a ele se pode compreender tal acto. E é por ser único, por essa condição de excepção, que se prova a sua genialidade.

Anónimo disse...

"Cumprir o génio" com uma agressão?! Peço desculpa, mas como fã do Zidane preferia que o tivesse feito com uma vitória no mundial, de preferência que nos brindasse com um golo proveniente de um momento mágico criado por ele, como tantos outros momentos que proporcionou a todo mundo, apenas com a diferença que este momento lhe daria o titulo mundial no seu último jogo oficial... Sinceramente prefiro não acreditar que ele para "cumprir o génio" tivesse que recorrer a um acto ao alcance de qualquer pessoa ou se preferirem "comum mortal"!! Mesmo sendo Zidane o que ele fez, não passou de uma agressão, um acto irreflectido...Qualquer "comum mortal" era capaz de ser expulso numa final de um mundial, mas resolve-la...Isso só muito poucos, um deles é Zidane!! Podem dizer que ele já o tinha feito, que ele não tinha nada a provar a ninguém, que é um génio e que portanto faz o que quer, isso tudo é verdade, mas a agressão apesar de uma cota parte de genialidade, uma vez que deitar o Materazzi a baixo daquela maneira também me parece um forte prova de capacidade, no entanto essa capacidade não é baseada na genialidade que nos brindou durante toda a carreira e que o transformou no ZIDANE... A genialidade de Zidane foi demonstrada inúmeras vezes, mas que me lembre sempre com uma bola nos pés!!

Anónimo disse...

A unica coisa que se defende, neste texto, é que tudo tem o seu reverso. Com o "cumprir", tenta-se explicar que zidane atingiu todas as fases inerentes à definição de um génio. Ou seja, a irreverncia não se define. Tão pouco se controla - se não, não era irrverencia -. A linha que separa a loucura do génio, é muito ténue...

Nuno disse...

Desde o Euro 2000, quando a França defrontou o Portugal do Humberto Coelho, que sinto que o Zidane tem algo de especial. Quando digo especial, não me refiro apenas à sua extraordinária qualidade enquanto jogador. Isso é inegável. Aquilo que lhe reconheço é um atributo que não está ao alcance de todos. No mundo do futebol, além dele, só o senti no Maradona. Falo de uma capacidade transcendente em mudar o mundo. Aquilo de que o acho capaz, no futebol, é de virar o rumo de um jogo a seu bel-prazer. O Zidane e o Maradona foram os únicos jogadores que senti que, a qualquer momento, por pior que fosse o cenário, conseguiriam transformar um jogo, bastando para isso exercerem a sua vontade. Talvez por isso e por tê-lo percebido frente a Portugal (e um Portugal que jogava mesmo muito) nunca consegui dar ao Zidane o valor merecido. Houve sempre algum rancor da minha parte por ele ter a capacidade de derrotar quem quer que lhe aparecesse à sua frente e de não ser português. Haver um adversário invencível criou alguma inveja e não permitiu que me apaixonasse convictamente pelo seu futebol.

Esta convicção na invencibilidade de Zidane leva-me a pensar como penso em relação à cabeçada no Materazzi. Como é óbvio, agredir um adversário numa final está ao alcance de todos. Não é o acto em si, repito, que aplaudo. Aliás, como já tinha dito, ninguém além do Zidane seria por mim reverenciado depois de fazer aquilo. Resolver uma final, é verdade, ao contrário de uma agressão, já não está ao alcance de todos. Mas, ainda assim, está ao alcance de alguns, como Ronaldinho, Kaká, Zidane, Del Piero, Riquelme, etc... Se o Zidane não fosse expulso, acredito que dificilmente a França não seria campeã do mundo. Tudo indicava isso. Quando o Zidane tocava na bola, mesmo que longe da área adversária, acredito que todos os italianos se arrepiassem. Creio não ser preciso possuir uma sensibilidade especial para sentir que o Zidane, mais tarde ou mais cedo, iria resolver o jogo. Aliás, só o Buffon tinha conseguido adiar as coisas até àquela altura.

Momentos mágicos do Zidane há muitos. Momentos mágicos que definam campeonatos, também se encontram alguns. Já todos sabíamos do que o Zidane era capaz. Se o fã do Zidane é aquele que prefere que ele repita o que já sabíamos que ele conseguia fazer, eu não sou fã dele. Nessa medida, sou algo mais. Porquê? Porque, ao contrário de toda a gente, achava que ele era superior àqueles que conseguem resolver finais. Achar que ele é superior só pode ser feito exigindo que ele faça sempre algo de extraordinário. Resolver a final, não estando ao alcance do "comum mortal", está ao alcance dos grandes jogadores. É por achar que Zidane é ainda superior a esses grandes jogadores que a resolução da final não lhe faria inteira justiça. Se ele resolvesse a final - entendam-me - não perderia o estatuto de grande jogador, mas talvez não atingisse o olimpo da genialidade.

A única forma de se "cumprir", de se manifestar superior, era revelar-se superior ao que define os outros. Conquistar mais um título é uma capacidade humana; ignorar, de forma voluntária, essa conquista é sobre-humano. Zidane agrediu Materazzi. Isso é incontestável. Enquanto agressor, deve ser punido. Mas ao agredi-lo, fez algo mais. Provou que era superior. E provou-o não por tê-lo agredido, mas porque, ao fazê-lo, se demonstrou indiferente às consequências fatais do seu acto. Zidane não cometeu um acto irreflectido. Não agrediu Materazzi no calor do lance. Ouviu as palavras do italiano, reflectiu, parou a marcha, voltou-se, caminhou decidido em direcção ao seu adversário e, sem hesitar, convicto do que fazia, agrediu-o. Naquele momento, Zidane poderá não ter pensado nas consequências do seu acto, mas sem dúvida que sentiu que tinha o direito de fazer o que fez, pois, enquanto génio, atingira um patamar que lho legitimava.

É aqui que entra o debate sobre os "direitos especiais". À luz do jogo, ele não tinha o direito de agredir. Como tal, foi expulso. Enquanto jogador, não tinha direitos especiais. Mas o jogo pertence à esfera do humano. Não foi enquanto homem normal que Zidane se atribuiu o direito de fazer aquilo, mas enquanto ser de excepção. Talvez não tivesse o direito humano de agredir o italiano e de perder o título que poderia conquistar, mas a sua genialidade concedera-lhe um estatuto ímpar e o direito de voltar as costas a tudo. Vou citar uma passagem de Dostoiévski, do Crime e Castigo, em que se debate exactamente o direito que certos seres podem ter. Diz Raskólnikov:

"(...) as pessoas, pelas leis da natureza, se dividem em geral em duas categorias: a inferior (vulgares), ou seja, por assim dizer, o material que serve unicamente para engendrar semelhantes; e os homens propriamente ditos, ou seja, as pessoas que possuem o dom ou o talento de dizer, no seu meio, uma palavra nova. Existe aqui, sem dúvida, um sem-fim de sub-divisões, mas os traços distintivos de ambas as categorias são bastante nítidos: a primeira categoria, ou seja, o material, consta em geral de pessoas conservadoras por natureza, correctas, que vivem na obediência e gostam de ser obedientes. A meu ver, também têm obrigação de ser obedientes, porque é esse o destino delas, e nada há de humilhante nisso para elas. A segunda categoria consta dos que violam a lei, que são destruidores ou têm propensão para o serem, consoante as suas capacidades. Os crimes destas pessoas, evidentemente, são relativos e muito variados; na maioria dos casos exigem de diferentes maneiras a destruição do presente em nome da ideia do melhor. Se um desses indivíduos precisar, para concretizar a sua ideia, de passar por cima de um cadáver, do sangue, então poderá, a meu ver, no seu íntimo e em consciência autorizar-se a si mesmo a fazê-lo - isso, aliás, depende da ideia e da envergadura da ideia, há que notá-lo."

Não digo que Zidane tinha o direito de agredir e sair impune. Nada disso. O que digo é que alcançara um estatuto que lhe permitira "autorizar-se" a ignorar aquilo que os "vulgares" tinham definido como conduta correcta. E é precisamente ao ignorar a "lei" dos "obedientes" que Zidane se torna definitivamente invulgar. É ao passar por cima dos outros e o ter o direito de passar por cima dos outros (de um ponto de vista moral e não na prática das regras do jogo) que ele atinge todo o seu génio.

Diz ainda Raskólnikov:

" (...) tinha de saber, e saber o mais depressa possível, se era um piolho, como todos, ou se era um homem. Conseguiria transpor o limiar ou não conseguiria? Ousaria abaixar-me e apanhar, ou não? Seria eu uma criatura tremente, ou teria o direito..."

Concluiu o protagonista dostoievskiano que, apesar de pensar o contrário, ele não tinha o direito de passar por cima dos outros. Ao contrário de Napoleão, a quem a genialidade concedera esse direito, Raskólnikov era afinal "um piolho, como todos". Como tal, pagou pelo seu crime. O que defendo é precisamente isto: se Zidane não tinha o direito, então era um "piolho" e não se distingue em nada dos outros grandes jogadores de futebol. Mas a ser verdade aquilo que pressinto, a capacidade invulgar que tinha para resolver um desafio, ao alcance apenas de um ou dois, então ele tinha aquele direito.

Claro que os actos de Napoleão são condenáveis. Mas são indissociáveis da sua grandeza. Nunca lhe teria sido reconhecido o génio se não fosse ao mesmo tempo o sanguinário que foi. Da mesma forma, Zidane poderia ter sido um grande jogador, mas só se perfez génio quando superou a lei moral em que o queriam conservar. A sua grandeza é indissociável daquele acto.

Resumindo, o fã de Zidane que lhe reprova moralmente (e aqui o conceito chave é a "moral") a atitude daquele prolongamento não pode, ao mesmo tempo, considerá-lo um génio. Isso é totalmente contraditório. O fã que preferia que ele tivesse sido "obediente" e vencido a final pode apenas deliciar-se com aquilo que é humano em Zidane. Enquanto fã de Zidane, sempre achei que ele não era humano. Como tal, pretendia dele mais que uma vitória humana. E essa vitória ele alcançou-a ao ignorar a glória humana que o campeonato do mundo lhe traria e ascendendo, exactamente por causa dessa indiferença , a um patamar sobre-humano.

Anónimo disse...

Não considero que tenham existido apenas 2 génios (como jogadores) na história do futebol, porque resolver um jogo não é necessariamente fabricar um golo, disse fabricar e não marcar. Claro que se pode discutir níveis de genialidade, bem como discutir a própria definição de génio ou de fã, uma vez que são dois conceitos algo relativos. Há fãs que não conseguem criticar o seu ídolo independentemente do que ele faça, mas há também aqueles que conseguem olhar os seus ídolos “apenas” como humanos com capacidades fabulosas ou geniais!!

Considerar que uma pessoal para ser genial ou completar o seu génio tem necessariamente que mostrar que é indiferente aos conceitos das pessoas comuns é um ponto de vista, que no entanto pode ser rebatido com o facto de que várias pessoas comuns também ignoram os conceitos tomados pela maioria, são os vulgos excêntricos. É também verdade que a genialidade está quase sempre ou sempre associada a excentricidade, a associação em sentido contrário como é óbvio não pode ser aplicada. Mas a excentricidade mínima exigida para se considerar alguém como um génio pode ser tão simples como a visão completamente diferente que esse tem sobre algo, como por exemplo a maneira como Zidade vê, pensa e executa futebol, ou de como Napoleão via, pensava e executava uma batalha ou a preparação da mesma, certamente são feitos que não estarão ao alcance de qualquer um!!

Em relação à necessidade de Napoleão em ser sanguinário, bem como à de Zidane dar uma cabeçada para que se reconheça o seu génio, é também ela subjectiva, uma vês que nem todos os génios, felizmente, têm a sua imagem associada a feitos deste género, as suas excentricidades ficavam por um patamares bastante mais baixos, que passavam simplesmente despercebidos, até porque excentricidades todos temos algumas.

Um fã pode considerar Zidade um génio e ao mesmo tempo criticar a sua atitude, mas nunca o terá menos em conta por ela. O que passou na cabeça de Zidane naquele momento pode ter também várias visões do assunto, como por exemplo, ter pensado que o seu estatuto aliado ao facto de ser o seu último jogo o tornavam intocável, ou que simplesmente queria fazer frente a Materazzi e no último momento não se conteve, na realidade as possibilidades são infinitas!! O que realmente lhe passou pela cabeça apenas ele saberá...

A meu ver para alguém ser imortalizado ou elevado a um “patamar sobre-humano” na realidade não tem necessariamente de fazer algo negativo, como carnificinas ou cabeçadas. Até porque a maior parte dos génios não é associado nem imortalizado por actos negativos. Schumacher talvez o piloto mais genial de sempre, daqui a alguns anos certamente poucos recordarão algumas “atrocidades” cometidas em pista por ele, como atirar o carro deliberadamente mais que uma vez para cima de outros pilotos para evitar perder o titulo, claro que também pode haver quem ache que apenas com isso ele cumpriu o seu génio. Mas podem ser chamados variados nomes como Fangio, Jordan, Einstein, Newton, entre muitos outros que não são associados a acções negativas, porém podem ter realizado inúmeras acções que foram apagadas da história por força da grandeza das suas conquistas.

O meu ponto de vista é apenas que Zidane era/é e seria/será sempre um génio, como o seria sem a cabeçada. Dai nunca poder concordar com a cabeçada que "faz com que cumpra o génio".

Nuno disse...

Não digo que só a cabeçada o fizesse cumprir o seu génio. Podia ter sido outra coisa qualquer, positiva ou negativa. Mas foi a cabeçada que demonstrou que ele era indiferente às leis dos "vulgares". Como tal, foi através dela que Zidane se "cumpriu como génio".

O que está aqui em causa é precisamente a definição de génio. De uma forma abreviada, sem querer aprofundar esta questão, posso tentar definir o homem de génio. Génio não é aquele que tem qualidades excelentes. Ser um génio não é só ser muito bom ou o melhor naquilo que se faz. É ser diferente, essencialmente num nível psicológico, dos demais. O que defendo é que Zidane não foi só um futebolista genial, com capacidades que poucos tinham, mas um homem genial. E foi por ser um homem genial que se pôde tornar num futebolista genial. Reconhecer-lhe genialidade enquanto futebolista faz-se reconhecendo-lhe o talento que se lhe reconhece. Reconhecer-lhe o génio enquanto homem só seria possível após um acto de inequívoca indiferença perante os outros. Essa indiferença, como é óbvio, só lhe foi permitida após a fabulosa carreira que teve. Como tal, pode-se afirmar que, para se "cumprir génio", precisou primeiro de se "cumprir futebolista genial". É desta forma que só ao Zidane é compreendido tal acto.

Quanto ao Shumacher ser o piloto mais genial de sempre, discordo. Acho até que é uma boa comparação, para tentar exemplificar o que defino como génio. Não posso reportar-me a pilotos como Fangio ou a outros mais antigos, nem posso falar aprofundadamente de Formula 1, pois não tenho conhecimentos suficientes para o fazer, mas o Shumacher teve pouco de genial. Foi o melhor do seu tempo. Indiscutivelmente, foi-o. Na minha opinião, foi-o porque foi bom, mas também porque nunca teve oposição à altura. Mas não foi genial. Nunca fez coisas que julgássemos estar só ao alcance dos deuses. Foi um humano sobredotado, mas mais nada. Ao contrário do Shumacher, aquele que é para mim o piloto de maior talento de sempre, foi um génio. Falo de Ayrton Senna. Quem o viu correr na chuva, percebe o que digo. Vê-lo correr nessas condições criava sempre uma sensação de pequenez. Como se ele tivesse um poder especial que os outros não tivessem. Viu-o, com carros mais fracos, discutir corridas e campeonatos com os melhores. Viu-o, no Maclaren vermelho e branco que ele acabou por imortalizar, de capacete amarelo e verde, depois de arrancar mal e de ocupar o quinto lugar no fim da primeira curva, ultrapassar os quatro pilotos que lhe estavam à frente numa só volta, ascendendo ao primeiro posto com uma facilidade sobrenatural. Nunca vi o Shumacher fazer coisas destas. Era um piloto muito calculista, muito correcto. Um génio nunca é correcto. Shumacher foi só excelente. Apesar de ter ganho mais que outros que foram mais geniais que ele. Da mesma forma, Zidane não precisava de ganhar mais que os outros. Precisava, isso sim, de demonstrar o quão diferente dos outros era.

JFC disse...

nunca, nesta vida imaginei que houvesse alguém com uma opinião semelhante à minha. Ja uma vez escrevi um post sobre este assunto. Com alguns pressupostos diferentes mas no essencial igual.

Grande post.

Manuel Nascimento disse...

JFC, é pena é teres escrito esse post dois anos depois do Nuno e teres vindo, duas semanas depois, comentar a dizer "já uma vez escrevi...".

Mas calma, que também acho que boas ideias são para ser aproveitadas. Não se deve é esquecer o respeito à origem.