quinta-feira, 5 de abril de 2018

Equilíbrio Emocional

É impressionante que comentadores, treinadores e antigos jogadores nunca expliquem os resultados de um jogo recorrendo ao descontrolo emocional que se apodera dos jogadores em alguns momentos específicos de um jogo de futebol. Há um vício interpretativo absurdo, muito recorrente a partir do momento em que as análises tácticas começaram a ficar mais sofisticadas, que consiste em achar que todos os acontecimentos de um jogo se explicam tacticamente, que o sucesso de uma equipa e o insucesso da outra se devem apenas ao braço de ferro entre as tácticas a que os dois lados dão expressão. Um golo, sobretudo numa competição a eliminar e que continua a ser encarada como decisiva para aferir a verdadeira valia das equipas, pode ser suficiente para alterar o estado emocional dos jogadores, e pôr em causa toda uma táctica. Ninguém parece dar valor a isto, como se isto não prejudicasse a qualidade dos jogadores e os planos dos treinadores. Em competições como estas, muito mais do que em jogos de competições de regularidade, é muito comum vermos uma equipa a baixar os braços a partir do momento em que sente que já é difícil dar a volta a uma eliminatória. E, no final, diz-se que a outra equipa foi muito superior, e que isso se viu até na forma como os derrotados não conseguiram reagir animicamente. Mas uma coisa influencia a outra. Um golo, mesmo quando caído do céu, perturba emocionalmente os jogadores, e fá-los descrer das suas qualidades. O jogo é jogado por humanos, e é natural que um jogador se enerve quando as coisas não correm bem, se desmotive quando as expectativas são frustradas e que perca concentração quando as possibilidades de êxito diminuem. O jogo não é só táctico, e as suas incidências não podem ser explicadas apenas falando de táctica. Não é raro que a táctica não explique nada acerca de um resultado final. E, apesar disso, não há nenhum comentador que olhe para um jogo e que seja capaz de chegar à conclusão de que, naquele desafio em particular, a equipa vencedora não fez o suficiente para ganhar mas teve sorte, ou que tacticamente esteve mal mas beneficiou da intranquilidade da equipa adversária num momento específico do jogo.

Vem isto a propósito da primeira mão dos quartos de final da Liga dos Campeões, entre Liverpool e Manchester City. A opinião é quase unânime: vitória táctica claríssima de Klopp, que soube explorar as fragilidades do City de Guardiola. Desculpem a frontalidade, mas quem acha que o resultado final foi mais obra de Klopp, e das ideias que tinha para o jogo, do que propriamente das incidências do jogo não percebeu nada do que se passou em Anfield. Nada! Em primeiro lugar, porque nenhum dos golos do Liverpool se deveu propriamente à tal estratégia de explorar as fragilidades do adversário. O primeiro golo é em contra-ataque, é verdade, mas além da irregularidade no momento do passe para Salah, só resulta em golo porque Kyle Walker deu os neurónios para caridade. Em segundo lugar, porque o verdadeiro ascendente do Liverpool só se consumou após o 2-0, quando os jogadores do City se intranquilizaram e nem sequer conseguiram condicionar o jogo de posse do adversário. E, além disso, esse ascendente materializou-se no exacto oposto do que seria a tal estratégia de explorar as fragilidades alheias. Quando o Liverpool foi melhor em campo e criou algum embaraço à defesa do City, foi em ataque organizado. O que é que isto tem a ver com a tal estratégia perfeita de Klopp? Em terceiro lugar, e mais importante do que tudo o resto, porque os golos modificaram de modo decisivo as emoções dos jogadores.

O City entrou em campo como sempre, a trocar a bola e a sair de zonas de pressão com qualidade. E, apesar da agressividade defensiva do Liverpool, e da competência nos momentos de pressão, a equipa de Guardiola conseguiu impor o seu estilo. Tudo mudou em poucos minutos, primeiro com aquele golo de Salah, com contribuição dupla de Walker (antes do erro final, já se tinha posicionado mal no início da jogada, e podia perfeitamente ter tornado o fora-de-jogo de Salah muito mais evidente), depois com o falhanço de Sané, logo a seguir, num lance de contra-ataque que podia ter reposto a igualdade no marcador, e finalmente com o segundo golo, também logo a seguir, num pontapé do meio da rua de Chamberlain tão espectacular quanto fortuito (além de um remate daqueles tanto poder entrar ali como ir parar à bancada, a bola vai direitinha aos pés de Chamberlain, que está entre três jogadores do City, depois de uma bola dividida entre Milner e Gundogan). Num momento o City dominava; no momento seguinte perdia por dois. E, mais do que isso, sem que se notasse que o adversário fizera muito por isso. Não há nada de especial na forma como se construíram os dois primeiros golos. E já nem vou falar do terceiro, que vem na sequência de quatro ou cinco ressaltos. De repente, uma equipa que tinha entrado calma em campo, que estava a jogar próximo da área adversária e a conseguir entrar no bloco do adversário, que estava a ser capaz de condicionar os movimentos desse bloco e a forçar as penetrações no mesmo, está a perder por dois sem conseguir identificar uma razão para tal. Em equipas mais maduras do ponto de vista mental, isto talvez não fizesse tantos estragos. Na verdade, um golo relançava completamente o jogo e a eliminatória, e por isso não era caso para tanto. Mas a verdade é que os jogadores se enervaram. Os minutos seguintes foram de descrença absoluta, e as perdas de concentração sucederam-se. Poucos foram os que conseguiram manter a lucidez, de tal modo que a equipa nem sequer conseguiu preservar a sua identidade. Mérito do Liverpool? Não. A explicação para o que se passa em campo não passa necessariamente por aquilo que de bom ou de mau as equipas fazem. Muitas vezes, são as próprias incidências do jogo que melhor o explicam.

A dada altura, era o Liverpool que geria a posse, e o City que andava atrás da bola. Melhorou quando Guardiola trouxe Silva para o lado de Fernandinho, e o espanhol deu clarividência àquela zona. Mas nessa altura já era tarde. Já o City tinha sofrido o terceiro e já podia ter sofrido o quarto. O Liverpool foi melhor entre o segundo golo e esse momento, e foi-o única e exclusivamente por questões emocionais. Nem sempre um resultado positivo implica que a equipa vencedora tenha sido melhor do ponto de vista táctico ao longo do jogo. Neste caso, o Liverpool adiantou-se no marcador sem ter feito grande coisa por isso, chegou ao segundo uma vez mais sem especial mérito do colectivo e aproveitou o desnorte que entretanto se vivia nas hostes do adversário para fazer o terceiro. Esta interpretação do resultado é completamente distinta da interpretação mais consensual, que diagnosticou uma superioridade evidente dos pupilos de Klopp na primeira parte. Reconheço superioridade, sim, mas não a consigo destrinçar do estado emocional dos citizens. E, aliás, só a reconheço no momento em que os citizens claudicaram do ponto de vista emocional, naqueles 15 ou 20 minutos de profunda desconcentração, em que os jogadores não sabiam o que fazer à bola, que espaços ocupar, se deviam acelerar o jogo ou pausá-lo, se deviam pressionar alto ou baixar linhas, etc.. Reconheço superioridade ao Liverpool na primeira parte, sim, mas não reconheço qualquer superioridade táctica. Não foi tacticamente que o Liverpool foi superior. Foi animicamente. E foi-o, não porque seja uma equipa mais bem preparada do ponto de vista anímico, mas porque os acontecimentos do jogo o propiciaram. As pessoas ignoram a importância dos golos na história de um resultado e depois acham que os resultados espelham necessariamente as qualidades individuais e as qualidades colectivas das equipas, as intenções dos treinadores e os planos de jogo. E eis que dão voz a todos os disparates em que acreditam.

P.S. A sensação que todos tiveram, no final do jogo em Turim, foi que o Real Madrid se superiorizou de forma clara à Juventus. Mas a história do jogo seria a mesma sem aquele erro forçadíssimo de Chiellini, aquele golo extraordinário de Ronaldo e a expulsão logo a seguir de Dybala? A Juventus acabou de cabeça baixa e braços caídos, aparentemente vergada ao poderio dos espanhóis, mas antes de tudo isso estava muito mais próxima do empate do que propriamente do descalabro.

10 comentários:

Pedro disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Pedro disse...

Percebo o que dizes. Muitas vezes refiro isso mesmo. Ainda recentemente numa discussão sobre a ascensão do fcp no arranque do campeonato ter muito a ver do sentirem fragilidade no SLB. O factor anímico é fortíssimo no futebol.

Mas não sei se é aplicável, da forma como pretendes, ao jogo de ontem.
Não me parece credível que este Manchester City se deixe quebrar animicamente, num jogo, "só" por estar a perder 2 ou 3 zero. E exactamente por estar numa competição a eliminar, sabendo do seu poderio e do que significaria o marcar de um simples golo na casa do adversário sendo a segunda mão em casa.

Acho que o Liverpool foi feliz. Acho que faltou ao City encontrar alternativas (um problema recorrente em Guardiola que sei que não concordas).

Tb acredito que a eliminatória não está fechada.

DR disse...

Como não vi o Liverpool-City, só posso concordar com o P.S. A Juve foi a melhor equipa até ao segundo golo e estava claramente a justificar o empate, mas depois daquele golão o jogo acabou. Incrível a qualidade individual do Real, nem precisam de ser superiores aos adversários, mesmo que os adversários sejam das melhores equipas do mundo.

Ainda achas provável a passagem do City? Uma equipa do Guardiola, em casa, marca 3 ou mais golos a qualquer um como se nada fosse, mas este Liverpool é incrivelmente perigoso em contra-ataque.
Mesmo que aches que o resultado da primeira mão se deveu mais a factores fortuitos, achas que o Guardiola devia mudar alguma coisa em relação ao primeiro jogo?

Ricardo disse...

Aqui entre nós, Nuno. A grande razão porque, em Portugal (porque é a realidade que efetivamente conheço bem), mesmo os comentadores mais fajutos (e são-no quase todos) se recusam a analisar um jogo nesses termos é simples: seriam obrigados a ir por caminhos que, digamos, não lhes convêm, caso queiram manter o "tachinho". Tão só isto.

Nuno disse...

Pedro diz: "Não me parece credível que este Manchester City se deixe quebrar animicamente, num jogo, "só" por estar a perder 2 ou 3 zero. E exactamente por estar numa competição a eliminar, sabendo do seu poderio e do que significaria o marcar de um simples golo na casa do adversário sendo a segunda mão em casa."

Pedro, foi tão evidente que nem sei como rebater isto. Até o de Bruyne acusou o toque.

DR diz: "Ainda achas provável a passagem do City? Uma equipa do Guardiola, em casa, marca 3 ou mais golos a qualquer um como se nada fosse, mas este Liverpool é incrivelmente perigoso em contra-ataque."

Acho improvável. Só acontecendo o inverso. Por exemplo, o City marcar, o Liverpool intranquilizar-se e eles marcarem o segundo. Mas um golo do Liverpool obrigaria o City a marcar 5. E já se percebeu que, apesar do que já conseguiu fazer, o Guardiola ainda não conseguiu convencer totalmente os jogadores a jogar desta maneira. Num momento de pressão, não conseguir manter a estabilidade emocional. E um golo do Liverpool na segunda mão terá o mesmo efeito.

"Mesmo que aches que o resultado da primeira mão se deveu mais a factores fortuitos, achas que o Guardiola devia mudar alguma coisa em relação ao primeiro jogo?"

Acho que o Guardiola errou em muitas coisas. Mas algumas delas são de longa data. Fernandinho e Walker, em jogos a doer, são sempre um problema. Não estão, nem conseguem estar, comprometidos com a ideia.

Ricardo diz: "Aqui entre nós, Nuno. A grande razão porque, em Portugal (porque é a realidade que efetivamente conheço bem), mesmo os comentadores mais fajutos (e são-no quase todos) se recusam a analisar um jogo nesses termos é simples: seriam obrigados a ir por caminhos que, digamos, não lhes convêm, caso queiram manter o "tachinho". Tão só isto."

Mas a analisar jogos estrangeiros também têm esse problema?

RF disse...

Se o factor emocional tem influência em todas as áreas de actividade por que não haveria de ter também no desporto? Por algum motivo treinadores que percebem muito mais disto que certos comentadores pedem apoio dos adeptos em momentos em que é preciso segurar as equipas. Mas o factor emocional também tem de ser trabalhado um pouco como no ténis. Há jogadores que têm qualidade semelhante mas o controlo emocional em pontos decisivos ou em desvantagem e isso faz toda a diferença. E depois isto é um JOGO. E por melhor que domines os princípios e a estratégia há sempre um factor de aleatoriedade que em competições longas acaba por ser diluído mas em competições a eliminar tem muito peso.

bio disse...

William no City. Para ontem.

DR disse...

"Fernandinho e Walker, em jogos a doer, são sempre um problema. Não estão, nem conseguem estar, comprometidos com a ideia."

Pegando nisso, se jogadores como o Fernandinho ou o Walker são incompatíveis com o modelo de Guardiola, porque é que jogam tanto? O facto é que são ambos indiscutíveis neste City, tal como Vidal o era no Bayern.

O City tem outros médios, porque é que joga o Fernandinho? Se precisava de um lateral direito, porque é que se contratou Walker e não um jogador com um perfil diferente?

Como é que jogadores com uma tomada de decisão tão pobre e que oferecem pouco mais que a sua capacidade física, têm tantos minutos numa equipa do treinador que mais valoriza a parte intelectual do jogo?

Já agora, muitos parabéns pelo blog, que é excelente! Só é pena não ser atualizado com mais frequência, porque o conteúdo é sempre muito bom.

César Vieira disse...

Os aspetos emocionais são obviamente importantes e além de serem falados amiúde em quase todo o lado, podem ter que ver com o treinador que, além de aspetos técnicos, tem que gerir as suas emoções e consciente ou inconscientemente gere/influencia as emoções dos jogadores.
No dia seguinte foi a vez do Sporting ter jogadores emocionalmente desorientados.

Seja como for,
Não me lembro de uma oportunidade de golo do City.
O Liverpool do Klopp é conhecido pelo ataque rápido e pelo contra-ataque, defendo de forma rudimentar; neste jogo conseguiu jogar bem em ataque posicional e defender bem porque se preparou para isso - podia ter corrido mal como já lhe correu outras vezes, mas correu bem.
Na segunda mão é possível que o City dê a volta após uma análise cuidada ao que o Liverpool fez neste jogo vs o que habitualmente faz - há que pôr as valias do plantel mais caro do mundo a funcionar.

bbcbruno disse...

Não deve demorar muito a ir buscar o Weigl.