quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

O Lance que define o Jogo

Aviso: este texto é só para gente honesta! Os desonestos podem guardar as discordâncias para si, pois elas serão fruto não do que aqui vai escrito, mas da desonestidade que possuem.

A história do jogo divide-se em 2 partes, antes e depois do minuto 57. Depois do minuto 57, a eliminatória estava resolvida, e não me parece justo explicar resultados quando a desconcentração de uns e a falta de pressão a que outros passam a estar sujeitos é evidente. Para gente honesta, explicar o jogo é explicar os primeiros 57 minutos. Nesses 57 minutos, quem foi superior? Para os desonestos, mas também para os que acham que explicar o jogo é reparar nos lances dos golos, o Real foi superior, porque marcou 2 golos. Eu discordo, primeiro porque sou honesto, e segundo porque tenho argumentos para provar quer a minha honestidade, quer a minha razão. Em que é que o Real foi superior? Defendeu razoavelmente bem, sim. E mais? Mais nada. Rigorosamente mais nada. Em 57 minutos, o Real teve um único lance de perigo, o do segundo golo. O primeiro golo nem sequer se pode dizer que seja um lance de golo e só um erro infantil de Piqué o permitiu; resulta de um pontapé ao longo da linha, com o Ronaldo a receber, completamente desapoiado, de costas para a baliza, e que era fácil de defender, caso Piqué assim o tivesse desejado. Bastava ter dado a linha a Ronaldo desde início, e de não ter provocado o um para um. Quanto ao Barcelona, pelo contrário, teve 4 ou 5 ocasiões muito boas para marcar, e não o conseguiu fazer. Se o tivesse feito, em qualquer um desses lances, alguém acha que o jogo tinha sido o mesmo? O lance que definiu o jogo foi, pois, o lance do segundo golo. Definiu-o e é a melhor ilustração possível do que foi a partida. Analisemo-lo.

FC Barcelona - Real Madrid 57' Gol Cristiano... por realmadridplay

4 são os momentos do lance: um toque de calcanhar de Xabi Alonso, ao calhas, que faz a bola seguir para Khedira; um alívio sem nexo de Khedira que põe a bola na frente de Di Maria; um drible desajeitado e lento de Di Maria na sequência do qual se isola, porque Puyol escorrega; defesa de Pinto precisamente na direcção de Ronaldo, que não teve dificuldades para finalizar. A jogada define-se em 4 momentos, e em nenhum deles se pode dizer que os jogadores do Real tiveram qualquer espécie de mérito. Alguém acha que qualquer um destes 4 momentos se treina? Que qualquer uma destas coisas resultam de aprendizagem? Pedro Henriques falou da qualidade do passe de Khedira. Qualidade? Passe? Haja paciência! O alemão nem faz um passe, nem olha para onde vai pôr a bola. Miguel Prates, por sua vez, gabou a "decisão genial" de Di Maria. Decisão? Genial? Podia alguém ser mais imbecil? A jogada acabou com a eliminatória, pois o Barcelona passava a precisar de marcar 3 golos, mas, mais do que isso, ilustrou o que foi a partida: uma equipa a jogar futebol (menos bem, é certo, do que nos habituou), a criar oportunidades de golo (lance de Pedro e Messi a abrir; Fabregas falha o remate já dentro da área, sem oposição, em zona frontal, depois de um cruzamento da direita; livre directo de Messi a centímetros do poste; remate de Busquets à entrada da área para defesa de Diego Lopez e recarga de Fabregas evitada in extremis por Varane, e isto depois de dois remates dentro da área, de Xavi e de Iniesta, que batem em Sergio Ramos; remate de Iniesta, após pontapé de canto, na zona de penalty que bate em Sergio Ramos) e outra sem conseguir incomodar significativamente o adversário, que resolve a eliminatória após um erro de um defesa que raramente erra e após um lance absolutamente fortuito. Pelo que foram estes 57 minutos, há alguém honesto que consiga dizer honestamente que o Real Madrid fez por merecer esta vitória?

P.S.: Nem tudo é mau para o Real Madrid. Varane é um defesa extraordinário. Não, certamente, por aquilo que as pessoas gostam nele: a velocidade, o jogo aéreo, a virilidade, etc.. É extraordinário porque, apesar de não ser excepcional com bola, consegue aliar índices de concentração altíssimos e uma maturidade acima da média, para a sua idade, a uma inteligência notável na forma como interpreta os lances defensivos. Há um lance, hoje, que o define, e que devia servir de lição a Piqué. É no início da segunda parte. Messi recupera uma bola, vira-se e fica apenas com Varane e Sergio Ramos pela frente. Vendo que a ajuda vem a caminho (vêm 3 jogadores do Real atrás de Messi), Varane oferece literalmente a sua direita, onde faltava Arbeloa, obrigando Messi a seguir para lá. A partir daí o lance está ganho. Messi só tem aquela solução e a Varane basta acompanhar, à devida distância, o argentino, sabendo ainda que tem a cobertura do outro central à sua esquerda, caso Messi ainda passasse por ele. Muito provavelmente, se em vez de Varane fosse Pepe ou Sergio Ramos, a opção teria sido forçar o um para um, ou, quando muito, esperar pela decisão de Messi. E teriam assim aumentado as hipóteses de Messi ser bem sucedido. Varane antecipou a decisão do argentino e deu-lhe o lado antes de ele poder fazer alguma coisa. É assim que se defende um lance de uma para um, quer se tenha apoio, quer não. Se Piqué o tivesse feito, no lance do penalty, se tivesse tomado a decisão antes de Ronaldo o enfrentar, dificilmente o lance terminaria como terminou. Como no lance de Messi, Ronaldo não tinha apoio, e só poderia fazer estragos se desequilibrasse no um para um. A Piqué bastava não provocar o um para um, oferecer o seu lado esquerdo ao português, conduzindo-o para a linha de fundo, que a jogada, provavelmente, terminaria sem perigo.

P.S.2.: Há quem veja em dois maus resultados seguidos sinais inequívocos de que a forma de jogar do Barça mudou. Esquecem-se é de que, ainda há 2 semanas, no Barnabéu, só não ganhou um jogo em que cilindrou o Real porque falhou uma quantidade absurda de golos; esquecem-se é de que estão a fazer um campeonato melhor, em termos de pontos e em termos de produção ofensiva, do que em qualquer ano de Guardiola. O problema destas pessoas é interpretarem a qualidade geral da equipa, que não é muito diferente do que era, de acordo com um ou outro jogo ou até, o que é mais grave, de acordo apenas com um ou outro pormenor de um ou outro jogo.

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

Factores Externos e Arruaça

Sabe quem lê este blogue que, embora acredite que há formas de jogar melhores do que outras, considero legítimas todas as estratégias de jogo. Uma equipa que queira defrontar outra defendendo os 90 minutos dentro da sua área, pode fazê-lo. Não considero que seja anti-jogo, porque o jogo, e as leis que o regulam, assim o permitem. Cabe à equipa que ataca encontrar soluções para contornar essa postura. Para fazer frente ao Barcelona, não são poucas as equipas que optam por esta estratégia, o que, antes de qualquer outra coisa, só demonstra a absoluta superioridade dos catalães. Apesar disso, o Barcelona não tem tido especiais dificuldades em fazer frente a equipas que actuem desse modo. Já sentiu problemas e já perdeu jogos contra equipas que se fecharam lá atrás, e já sentiu problemas e já perdeu jogos contra equipas que pressionaram mais à frente. Não me parece, por isso, apesar de lhe reconhecer legitimidade, uma estratégia especialmente inteligente. Depende do que se queira. Normalmente, quem actua com as linhas tão recuadas, quer apenas impedir que o adversário marque, e tem uma fé danada na boa fortuna.

Nada disto, como disse, é ilegítimo. Mas quando se junta esta estratégia (que tem como especial virtude reduzir espaços entre o sector defensivo e o sector intermediário e reduzir espaços entre cada um dos defensores) a factores externos tudo é diferente. O estado deplorável do relvado de San Siro, conciliado com a estratégia ultra-defensiva do Milan, não foi apenas uma forma (na minha opinião, ilegal) de travar o Barcelona. Foi um atentado ao futebol. O que o Milan fez foi cobrar um bilhete de futebol a milhares de pessoas para que as pessoas fossem ver uma coisa que não era futebol. É fraude. Que o Milan não ia jogar futebol já provavelmente todos desconfiariam. Que o Barcelona também não o pudesse fazer, porque o relvado foi especialmente preparado para esse efeito (e o Milan tem sido reincidente nisto), é outra história. Não consigo sequer perceber como a UEFA permitiu que o jogo se jogasse ali, tendo até em conta que, já este ano, jogos houve que não se jogaram porque o terreno de jogo não estava praticável (particularmente por força de certos fenómenos atmosféricos). O futebol é o único jogo colectivo que conheço em que o terreno de jogo não é igual de jogo para jogo, e isso é absurdo. Seja pela diferença inacreditável entre dimensões mínimas e dimensões máximas, seja pela falta de relva ou pelo seu tamanho, seja pelo que for, o terreno de jogo é diferente de estádio para estádio, e as equipas tiram partido disso. Ou seja, tiram partido de um factor externo ao próprio jogo, o que altera significativamente aquilo que o jogo depois é. É inadmissível que, a este nível, as equipas não sejam obrigadas a ter medidas-padrão nos seus campos, que não tenham de ter  a relva obrigatoriamente cortada num determinado tamanho, e que não sejam forçadas a ter maiores cuidados com o seu estado. Se os clubes são castigados por não garantirem as medidas de segurança exigidas pela UEFA e por determinados comportamentos de claques, por que razão não são castigados por, sistematicamente, falsificarem o jogo e, por conseguinte, prejudicarem o espectáculo, mexendo na forma como os factores externos o influenciam? Se a desculpa é a incapacidade de manter a relva sempre em bom estado, façam como em alguns países em que o Inverno é mais rigoroso e construam relvados sintéticos. Há-os actualmente com qualidade, e o espectáculo agradece.

Na minha opinião, adulterar os factores externos, como fez o Milan ontem, é um acto intimidatório. É basicamente o mesmo que fazer com que cada um dos seus jogadores entre com um alfinete em campo para o espetar secretamente nos adversários em certos lances. É arruaça, e é ilegal. A atitude dos italianos, ontem, foi a de um bando de arruaceiros. Não a dos jogadores; a do clube. Quem quer que hoje celebre a derrota do Barcelona - e há-os a rodos - não celebra apenas isso; celebra também a arruaça. Mais até do que noutras ocasiões, as pessoas que hoje estão felizes com o que se passou ontem em Milão não são adeptas de futebol. Não o são porque não podem sê-lo, porque ontem não se jogou futebol, e porque o Barcelona que precisam de ver destruído não foi derrotado por uma equipa de futebol. Foi derrotado por arruaceiros. Ontem foi, possivelmente, o jogo mais fraco que vi o Barcelona jogar nestes últimos 5 anos. Mas nem o Barcelona, por falta de inspiração ou demérito, nem o Milan, pelo que quer que tenha feito, foram responsáveis por isso. O jogo foi paupérrimo porque os factores externos não favoreciam o espectáculo e a estratégia do Milan encarregou-se de torná-lo impossível. O Milan nem sequer defendeu bem. Limitou-se a colocar 9 homens sistematicamente atrás da linha da bola (e um décimo bem perto), todos ao monte à frente da baliza, e nem precisou de estar bem organizado porque o relvado não permitia ao Barcelona as habituais trocas de bola rápidas em espaços curtos. O Milan também não atacou bem. Aliás, nem atacou, propriamente dito. Limitou a lançar um jogador, às vezes acompanhado por um segundo, e a ter o Pazzini lá na frente, mas sempre em desvantagem numérica. Não conseguiu lançar um único contra-ataque perigoso, e marcou porque sim, porque o jogo tem incidências estranhas que às vezes resultam em golo. Em abono da verdade, esta é provavelmente a pior equipa da História do Milan, e está agora numa posição incrivelmente privilegiada para derrubar aquela que é a melhor equipa da História do jogo. Tal posição só é possível, ao contrário daquilo que tem sido dito a respeito dos méritos de uns e dos deméritos de outros, porque ontem não se jogou futebol.

Numa altura em que se fala tanto em certos problemas relacionados com o futebol, aquilo que me apetece dizer é que as pessoas deviam ter juízo. Em vez de estarem preocupados com comportamentos racistas de certos idiotas, deviam preocupar-se, isso sim, com os verdadeiros problemas do futebol, que dizem respeito unicamente à influência que os factores externos continuam a ter na definição de resultados. Reduzam essa influência e o espectáculo será garantidamente melhor. Se não o fizerem, se permitirem que certos erros de arbitragem (erros que seriam facilmente evitados) continuem a ocorrer, se permitirem que os clubes continuem a definir o estado da relva e o tamanho do terreno de jogo, se permitirem que certos índices de agressividade continuem a ser legais, então o futebol continuará a ser o jogo primitivo que tem sido até aqui. Este Barcelona mostrou muitas coisas. Mas mostrou uma que me parece importantíssima. Mostrou que o jogo, enquanto jogo, tem muito por onde evoluir, que é possível contornar todas as estratégias defensivas possíveis, desde que se tenha uma capacidade colectiva, em termos ofensivos, extraordinária. E, ao mostrá-lo, mostrou por arrasto que é em termos ofensivos, essencialmente, que há aspectos em que o jogo pode continuar a progredir. Tal evolução não deveria poder ser interrompida, mas arrisca-se a sê-lo. Para ser sincero, não consigo perceber a felicidade de ninguém que goste de futebol em relação ao jogo de ontem. O que aconteceu foi um atentado, e atentados não deveriam deixar ninguém feliz. É claro que há seres irracionais que ficam felizes com atentados, como muitas comunidades islâmicas após o 11 de Setembro, mas não devia ser assim. Infelizmente, em futebol, continua a preferir-se a arruaça à excelência: era assim há umas décadas, é assim nos dias de hoje. Quanto mais penso nas diferenças entre o futebol de alto nível e o futebol de bairro, mais certezas tenho de que, pelo menos no que diz respeito a quem assiste ao jogo, é tudo a mesma coisa. A maioria dos adeptos de futebol é um adepto de bairro; tem tanta inteligência e tanto bom senso quanto a mãe desdentada que pragueja contra o árbitro por lhe ter expulsado o filho por este ter cuspido em três adversários, ou quanto o bêbedo que se debruça para acertar no fiscal de linha com um guarda-chuva. Para a maioria dos adeptos de futebol, desde que o resultado final seja o que desejam, tudo é permitido. Por eles, a vitória devia ser dada por estipulação, antes sequer de haver jogo. Por eles, não havia sequer jogo; havia só vitórias. A maioria dos adeptos de futebol não gosta de futebol; gosta que lhes aconteça o que lhes dá prazer. Vão ao futebol porque, vivendo em civilização, é dos poucos meios que têm para serem os arruaceiros que afinal são. A maioria dos adeptos de futebol pertence por natureza, ainda que não por lei, a um curral. Era a chafurdar que deviam passar os seus dias; não em estádios.

terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

A Mania da Objectividade

Uma das principais razões - talvez mesmo a principal - pelas quais a esmagadora maioria das equipas de futebol por esse mundo fora não joga bem é, a meu ver, a objectividade. Não é, aliás, infrequente ouvirmos dizer de uma equipa que mastiga muito o jogo no meio-campo que tem falta de objectividade. Comentadores, treinadores, jogadores, todos sem excepção reconhecem que, quando uma equipa não consegue criar perigo, quando joga demasiado para trás, quando perde tempo a encontrar boas soluções de passe, revela falta de objectividade. Para quase toda a gente, joga bem quem procura constantemente a baliza, quem vai para a frente, quem não perde tempo com inutilidades, quaisquer que elas sejam. Pessoalmente, aborrece-me que dois jogadores que põe quatro ou cinco adversários à rabia, desposicionando-os, desgastando-os, e mantendo a bola, sejam criticados por não serem objectivos. Aborrece-me porque esses jogadores fazem sozinhos o que uma equipa inteira não é capaz de fazer. E, invarialmente, são eles quem estão errados, na opinião de quase toda a gente.

Como sabe quem lê este blogue, considero haver pouquíssima gente que saiba realmente alguma coisa de futebol. Uma das razões pelas quais penso assim é precisamente a ideia praticamente consensual de que todas as acções em campo devem ser objectivas, sejam elas quais forem. Como também deve ser sabido, é costume não concordar com muitas das ideias praticamente consensuais acerca de futebol. Para mim, nenhuma acção em campo deve ser objectiva. Nenhuma! Não o deve porque, embora o jogo tenha um objectivo, cada uma das acções pode apenas ter um objectivo circunstancial. A ideia de que uma equipa deve ser sempre objectiva tem origem precisamente na falácia que consiste em achar que uma acção isolada tem de ser executada em função de um objectivo geral. Pois não tem. O futebol é essencialmente um jogo não-objectivo, nesse sentido. Não é esgrima, nem remo. Em esgrima, não se pode não ser objectivo. Todas as acções são ou para se defender, ou para atacar o adversário. Em remo, não se pode simplesmente não remar, ou remar em círculos. Mas futebol não é isto. É um jogo de tipo diferente. Quando uma equipa só tem em mente ser o mais objectiva possível não tem praticamente nada. Só volta para trás em casos extremos, quando encurralada junto a uma linha, ou quando lhe interessa queimar tempo; só sai a jogar quando o adversário não faz pressão alta; só faz um passe curto quando não tem ninguém na frente que possa correr feito parvo.

É talvez do feitio do que é moderno achar que tudo o que é objectivo é bom. E, por isso, acções cujo fim não seja claro são imediatamente consideradas acções erradas. Acontece em futebol, mas acontece também em muitas outras coisas. É essa a razão pela qual, por exemplo, se aceita geralmente que as Humanidades não merecem um investimento idêntico ao que merecem as Ciências ditas concretas. É também por isso, por exemplo, que se acha que crises económicas se combatem essencialmente com ideias económicas, como se a Economia não fosse influenciada senão por si mesma. Vivemos num tempo em que, habituados pela estupidez das opiniões públicas, achamos que tudo se resolve com um plano bem definido, com metas bem definidas, com continhas bem feitas. Achamos que, se tivermos um objectivo claro, se fizermos tudo o que está ao nosso alcance para atingir esse objectivo, e, se não nos desviarmos do plano e do objectivo do plano, acabamos por ser bem sucedidos. E ignoramos que, muitas vezes, desviarmo-nos de planos e de objectivos é a atitude mais correcta. É um vício científico, um vício que tem por modelo uma mentalidade matemática. Aprendemos a fazer contas quando somos pequenos, e não só nos julgamos imediatamente inteligentes como julgamos que todos os porblemas se resolvem matematicamente, ou seja, juntando parcelas, fazendo contas, e obtendo resultados. Pois nenhum problema complexo se resolve matematicamente, e nenhum problema humano, por assim dizer, pode ser solucionando com habilidades matemáticas. A atitude matemática que estou a atacar consiste em considerar que a execução de meia-dúzia de passos correctamente, e pela ordem correcta, conduz necessariamente ao resultado desejado. Nada no mundo que seja minimamente complexo se resolve assim, e uma das formas de estupidez, porventura a mais moderna das estupidezes, consiste em pensar que sim.

O futebol é demasiado complexo para que possa ser jogado objectivamente, matematicamente, com sucesso. E é por ser tão complexo que um conceito como "objectividade" é absurdo. A maior parte dos treinadores treina a sua equipa, portanto, para fazer coisas absurdas. É por isso que o jogo é tão mal jogado por esse mundo fora; é por isso que os melhores jogadores, os criativos, os inteligentes, os que pensam por si, recebem pouca atenção. Os treinadores querem animais irracionais que repitam o lhes mandam fazer, que joguem sempre em função de um plano de jogo, que façam, em qualquer situação, aquilo que são treinados para fazer, quer a situação convide a isso, quer não. Tais treinadores não sabem o que é futebol. Um treinador a sério não tem um plano de jogo. Isto é, porventura, radical de mais para que alguém o perceba. Deixem-me remodelá-lo: um treinador a sério, um treinador que saiba o que é o jogo, que perceba que, como outras coisas, o futebol é um jogo demasiado complexo para que o conceito de "objectividade" faça sentido, um treinador que compreenda que o futebol é essencialmente um jogo de situações atípicas, irrepetíveis, e que os seus jogadores não são executantes de um plano, mas seres pensantes, agentes que têm de decidir o que é melhor em cada situação, está-se nas tintas para aquilo a que vulgarmente chamam "planos de jogo". Planos de jogo são coisas de gente idiota que acha que o futebol é um jogo de planos.

O futebol é um jogo em que o plano se elabora constantemente, a cada alteração das circunstâncias de jogo. Antes de uma equipa poder ser objectiva, ou seja, antes de poder materializar o seu futebol numa oportunidade de golo, tem de criar condições para que possa sê-lo.  E isso leva, na maioria das vezes (dependendo, claro está, da forma como o adversário defende), muito tempo. A maior parte das equipas salta este passo, ou ignora-lhe a importância. Se virem uma brecha na frente, não hesitam em tentar um passe de morte, por menores que sejam as probabilidades de sucesso de tal passe. Crê-se que todas as veleidades concedidas pelo adversário, todos os espaços, toda a liberdade ao atleta que conduz a bola deve ser encarada como uma oportunidade de criar imediatamente uma situação de golo. Poucas são as equipas que encaram o jogo como uma sucessão, por vezes muito numerosa, de micro-acções. E é por isso que, por exemplo, a criatividade é um atributo tão pouco procurado. Quando se acha que o jogo é essencialmente objectivo, jogadores que saibam pensar, que saibam imaginar melhor do que os outros, não são especialmente diferentes. Veja-se o caso de Modric, no Real Madrid. É um exemplo, mas haveria muitos outros. No Real, Mourinho pretende dele o que pretendia de Sneijder no Inter: últimos passes. É por isso que Modric não rende o que podia render. O mesmo acontece com Özil. Mourinho acredita na objectividade do jogo, e embora seja, porventura, o melhor treinador do mundo a preparar a sua equipa em função dessa objectividade, reduz dramaticamente o potencial dela ao acreditar nisso. Modric é um criativo. Estaria como peixe na água numa equipa que trabalhasse muito o jogo a meio-campo, com passes curtos, tabelas, movimentos entre linhas, apoios e coberturas próximas. Como o encarregam de uma função, como fazem dele alguém que, a todo o custo, tem de solicitar os atacantes em condições ideais, corta-se-lhe a imaginação. Pedem-lhe que execute meia-dúzia de coisas e que não faça outras tantas, quando ele estaria bem se não lhe dissessem coisa alguma. Em cada lance que intervém, tem de agir de acordo com as instruções que tem. É obrigado, por isso, a agir quase automaticamente, a repetir certos movimentos, a tentar sistematicamente coisas idênticas. Quando resulta (o que acontece devido à sua qualidade), corresponde ao que esperam dele. O problema é quando não resulta, o que acontece muitas vezes, pois o sucesso de tal futebol não depende só dele. Aí, acusam-no de estar pouco inspirado, e não pensam sequer na possibilidade de a falta de inspiração ter sido causada pelas instruções que tem.

Nunca fui o maior admirador de Sneijder, mas deixei de gostar definitivamente dele precisamente no ano em que muitos achavam que ele merecia a bola de ouro, isto é, no ano em que foi campeão europeu no Inter. Deixei de gostar dele exactamente porque o seu futebol era mecânico: recebia a bola, rodava e tentava um último passe. Falhava trinta passes por jogo, mas eventualmente acertava um ou outro. Evidentemente, com a mecanização da equipa, as acções de Sneijder até tinham alguma eficácia. Por outro lado, na sua selecção, a jogar da mesma maneira, só a prejudicou. Para Mourinho, o seu médio de ataque é uma espécie de quarter-back, e é essa ideia que não aceito. Nenhum jogador de futebol, pelas particularidades do próprio jogo, pode ter uma função específica como têm os jogadores de futebol americano. O futebol é um jogo de decisões, um jogo de criatividade, e é a criatividade, e só ela, que deve ser cultivada. Modric e Özil, em abono da verdade, são muito mais criativos do que Sneijder alguma vez foi. Sneijder era um executante extraordinário, mas nunca me pareceu o mais criativo dos jogadores. O croata e o alemão renderiam muito mais se estivessem numa equipa que preconizasse um modelo de jogo menos objectivo, se lhes fosse pedido não uma série de tarefas, mas apenas que criassem, consoante as circunstâncias, e de acordo com a posição relativa em que fossem colocados no campo. Hoje em dia, com a cientificidade a que se aproximou o futebol, vive-se uma autêntica mania da objectividade. E os melhores jogadores, aqueles que arranjam soluções de que ninguém estava à espera, aqueles que são capazes de criar a partir do nada, que solucionam problemas absolutamente inéditos, sem nunca terem sido preparados para solucioná-los, acabam ostracizados no meio de tanta objectividade. E nem sequer se percebe que, juntando meia-dúzia de jogadores criativos e deixando-os encarregues apenas de criar se fica, ainda que de forma menos óbvia, bem mais perto dos objectivos a que se propõe qualquer equipa de futebol do que cultivando um ideal de objectividade que apenas coarcta o potencial criativo de uma equipa.