quinta-feira, 3 de outubro de 2013

Passe e Devolução: A Versão Bávara

E depois do que se passou ontem em Manchester, já é possível dizer que o Bayern de Guardiola é melhor do que alguma vez foi o de Jupp Heynckes? A tareia monumental que os bávaros foram dar a casa do vice-campeão inglês, pondo o adversário à rabia a maior parte do tempo, não pode ficar indiferente a ninguém. O Bayern de Heynckes revelou-se letal, cirúrgico, mas não tinha a capacidade para subjugar, durante 90 minutos, os seus adversários. Era uma equipa forte nos detalhes, e que se fez valer da capacidade de concentração e de uma ambição colectiva extraordinária. Mas, para vencer o que venceu, para chegar onde chegou, teve de sofrer muito. O futebol dos bávaros, no passado, era sofrido; tudo era feito em esforço, em velocidade, e cada jogada representava o último lance da vida de cada um dos jogadores. O Bayern de Guardiola, em poucos meses, é o completo oposto. Continua uma equipa fortíssima, não parece ter perdido capacidade de concentração, mas passa o jogo inteiro a passear, como se estivesse a fazer a coisa mais fácil do mundo. A diferença é incomensurável. Ontem, em Manchester, o City andou atrás da bola, e o Bayern de Munique andou literalmente a recrear-se. Sabe esperar pelos momentos certos para atacar, sabe jogar com as expectativas (as próprias e as dos adversários), sabe gerir o ritmo do jogo e circular a bola a seu bel-prazer, e sabe que uma jogada é só uma jogada, que, se fizerem as coisas bem feitas, terão outras jogadas e outras oportunidades para chegarem ao golo. O futebol dos alemães está agora muito menos dependente da inspiração individual, da concentração de cada um dos jogadores e da afinação com que se entendem. Agora, os princípios organizadores são a participação, em cada lance, de todos os jogadores, a recreação colectiva e a criatividade. Até os jogadores mais dados ao individualismo parecem entreter-se e gozar de um estilo que preconiza as tabelas, o envolvimento a pares, os triângulos, os toques de primeira. Vemos os bávaros a fazer, já com alguma frequência, aquilo que, para muitos, só os catalães, por qualquer mistério insondável, sabiam fazer: passe e devolução, passe e devolução, passe e devolução. Vemos, por exemplo, Alaba a entrar pelo meio (uma novidade, no modelo de Guardiola), a envolver-se no trabalho de posse a meio-campo e a solicitar a bola entre linhas; vemos Ribery a ir de um lado ao outro do campo para perto de Robben para lhe dar uma opção curta, e até vemos Robben a procurar companheiros no meio com os quais tabelar.

Ontem, jogou Thomas Müller como avançado e, apesar de Luís Freitas Lobo ter insistido que aquela não era a melhor posição para o internacional alemão, foi muito por aí que o Bayern foi tão superior. Sem bola, Müller é um dos melhores jogadores do mundo. A sua capacidade de movimentação e a inteligência com que percebe o que deve fazer e para onde deve ir a cada momento fazem dele, possivelmente, a melhor opção para a posição de atacante, nesta equipa. Sem bola, Müller saiu invariavelmente de entre os centrais, ora para se aproximar do portador da bola, estivesse ele numa faixa ou no centro, ora para ocupar o flanco direito, permitindo a Robben invadir o espaço entre a linha defensiva e a linha de meio-campo, por onde o Bayern depois progredia. Com isso, confundiu marcações, mas permitiu sobretudo soluções de passe inesperadas à sua equipa. Muito da dinâmica ofensiva bávara, ontem, se deveu ao extraordinário trabalho de Müller, ainda que Freitas Lobo tenha achado que ele nunca conseguiu entrar no jogo. Guardiola não pensa como a maioria dos treinadores, e não pensa decerto como Freitas Lobo. Para ele, há coisas mais importantes do que um determinado jogador tocar muitas vezes na bola. Ontem Müller terá sido dos jogadores mais importantes em campo, até pela liberdade que permitiu quer a Robben, quer a Ribery, e Guardiola não terá deixado passar isso. Que outro treinador, por exemplo, se daria ao luxo de tirar o melhor lateral direito do mundo da sua posição de origem para pô-lo no meio-campo, ainda por cima tendo tantas opções (e tão conceituadas) para ali? Que outro treinador escolheria o jogador mais baixo da equipa para jogar como médio-defensivo? Guardiola é diferente dos outros, e requer dos seus jogadores coisas diferentes. Com o regresso de Götze, Javi Martinez e Thiago Alcântara, é possível que Lahm volte a ser lateral, mas até ver foi o jogador que melhor cumpriu aquela posição. Onde me parece que Guardiola tem ainda que trabalhar muito (e pensar bem sobre quais os jogadores que melhor servem esse propósito) é no meio-campo. O meio-campo é a alma deste modelo e, neste momento, Schweinsteiger e Kröos são demasiado parecidos. O meio-campo funciona bem, tem a dinâmica certa e os princípios certos, mas falta-lhe criatividade. Posicionalmente, fazem de facto o que têm a fazer, não procurando a bola fora do bloco adversário, mas invadindo-o e solicitando-a entre linhas. Mas depois falta algum atrevimento para mantê-la dentro do bloco, para procurar procurar soluções difíceis e arriscadas, em espaços curtos. Invariavelmente, escolhem a opção mais segura. De Schweinsteiger, em abono da verdade, não esperava mais do que isso, e nunca me pareceu que pudesse ser outra coisa, no modelo que Guardiola quer implementar, que não médio-defensivo (agora já nem isso). Mas de Kröos, jogador que muito admiro, esperava outra coragem. Claro que ainda é cedo e que esse tipo de coisa ainda pode ser cultivada, mas Kröos, para já, não me parece dar tudo o que Guardiola precisa. Thiago Alcântara e Götze (ou eventualmente Ribery) poderão por isso trazer coisas diferentes ao meio-campo ofensivo do Bayern. Nenhuma destas observações é, contudo, relevante, se pensarmos na brutalíssima mudança operada por Guardiola em tão pouco tempo. Se, em poucos meses, foi capaz de pôr o Bayern a jogar de uma maneira tão distinta daquela com que se exibia antes, deve-se presumir que os pequenos defeitos que a equipa ainda tem se possam corrigir com o tempo. Seja como for, continuo por isso sem dúvidas de que o Bayern de Guardiola será a seu tempo aquilo que o seu Barcelona foi, uma equipa de passe e devolução perpétuos, capaz de subjugar qualquer adversário e capaz de conduzir cada partida de futebol como bem lhe aprouver. E, depois disto, continuará a ser possível defender que o modelo de Guardiola não é o mais avançado para um jogo como o futebol e que só resultou num sítio em que os jogadores eram perfeitos para esse modelo?

16 comentários:

DC disse...

Mandzukic no banco. Assim, sim!

Cantinho do Morais disse...

Ontem, ao ver o jogo, pensei: "aqui está, para quem ainda não tinha visto, este jogo marca o dia em que Guardiola colocou a sua impressão digital sobre o Bayern."

Foi tudo muito bom.
Claro que Freitas Lobo é um nabo e quando disse isso do Muller a avançado, só me apeteceu tirar o som. Enfim... E ainda mencionou que os centrais não eram os ideais para o tipo de jogo do Bayern (como se existissem Piqués em cada esquina).

E, depois, lembrei-me, como será com Thiago, Javi e Gotze? Lahm voltará à direita (Rafinha nunca jogou tão bem, nem nos tempos do Schalke ou Génova) onde fará de Dani Alves mais inteligente.
E, no meio, Schweinsteiger será o elo mais fraco, embora me pareça um jogador com forte presença junto de Guardiola.
Talvez Javi jogue a central ao lado de Dante, promovendo uma 1ª fase de construção que Boateng ou Van Buyten não conseguem dar.

Bayern está forte, mas ainda há jogadores que correm muito com a bola e dão mais de 3 toques. Robben e Ribery podem fazê-lo, agora outros já mais complicado.

Manduzkic terá ficado preocupado com o que viu ontem de Muller. Mas, em 2014, como será com Lewandowski?

Há muitos jogos pela frente e muitas opção não serão demais. A liga alemã exige muito dos jogadores e o objectivo é só um: Vencer.

Grande post!

Blessing disse...

Estou a gravar, agora, o vídeo de análise ao jogo. E os pontos fundamentais são parecidos aos que citas aqui.
Robben, Alaba, Muller... Depois, pressão e posse, posse para desorganizar... A chave: Mover o adversário... Até lá, posse, posse e posse...

Unknown disse...

E pronto o devaneio continua, fiquei agora a saber que o rolo compressor do ano passado que humilhava tudo e todos, massacrando e goleando TODOS os adversários, ganhou tudo em sofrimento e é pior que o Bayern deste ano, de facto, tu és uma anedota, mas vale a pena ler mais que não seja para rir dessas loucuras..

Blessing disse...

Nuno, desculpa a publicidade, mas como tinhamos ficado com as mesmas impressões, http://possedebolla.blogspot.pt/2013/10/palestra-de-guardiola.html ,

Dá uma vista de olhos

Iniesta de Mundet disse...

Não vi o jogo, mas o que descreves realmente não é surpresa. Desde o jogo na pré-época que fizeram com o Barça que se percebeu que o modelo de Guardiola ia acabar por impôr-se na equipa alemã. Curioso apenas agora T.Muller ter sido aposta para jogar a 9, pensei que essa escolha chegasse mais cedo e há uns posts atrás pensei em perguntar-te se não seria a melhor opção, tendo em conta as caracteristicas que Mandzukic e a veterania de Pizarro, por um lado, e o overbooking no meio campo, por outro.

Deprimente é ver o contraste com este Benfica. Quase ninguém dá apoios, jogadores a milhas uns dos outros e usa-se muito o corre e passa e pouco o passa e corre.

Bernard öZilva disse...

Não vi o jogo,mas o Bayern de Pep já me impressionou bastante quando jogo com o Chelsea na Supertaça;eram eles a mandar no campo,sempre com muita calma;personalidade...

Com Heynkes não era bem assim.. Equipa também tinha forte personalidade é certo.Jogo dinâmico,intensivo(bom pressing e tal)... mas não tinham aquela serenidade que tem agora com Pep..

É que Lahm a trinco dá outro sabor..
Futebol mais pausado(cerebral),imaginativo;mais criterioso...

E isso faz toda a diferença...

PS:É só ver de novo os dois jogos do Bayern de Heynckes contra o Barça e a final contra Dortmund(a primeira parte principalmente);eles não mandam assim tanto no jogo!
Eram letais nas transições;mas NUNCA me impressionaram em posse...(ao contrário do que está a acontecer agora..)

Guardiola está de facto a fazer um trabalho notável...

PS2:Ó Nuno,pensas que o Ribéry poderá ganhar a Bola de Ouro(depois do Troféu UEFA)ao Messi?.. É que está a jogar muito.. e com maior criterio,sobretudo...(e isto deve-se muito ao Guardiola)

António Teixeira disse...

Yilmaz,

O Lahm é delicioso mesmo :)

Sobre o Ribéry, por melhor que jogue, não joga tanto quanto o Messi. Deviam mudar as regras e meter qualquer equipa com o Messi directamente nas meias finais de qualquer competição. O gajo anda lesionado quase sempre e mesmo assim faz o que faz.

Cumprimentos

ricnog disse...

Como sempre questionei, sera que o guardiola e bom, ou tinha equipa? Respondo agora que ele eh fabuloso e o barca era o que era à custa dele.....poderemos sp verificar que o treinador certo com jogadores certos tem mais valor e qualidade....acredito que seja mt mt dificil este bayern chegar a qualidade daquele barca, ate porque nao ha messi nem a sua inteligencia, nem iniesta.....mas acredito que ande mt proximo e que guardiola faca deste bayern ser uma equipa de topo nos proximos 5 anos....!!

Inteessantte seria ver o mourinho no campeonato alemao, pois so falta o mediatismo do mourinho para este ser o melhor campeonato do mundo....que pela qualidade ja o é, penso eu!!!

Vamos ter uma alemanha como uma espanha???a dominar durante os proximos 10 anos?

Abraco e parabens pelo blog que ja leio algum tempo, mas q so agora comentei....

Zinedine Zidane disse...

E o Porto do Paulo Fonseca? Uma decepção?

Batalheiro disse...

Não Nuno agora vão dizer que os árbitros protegem o Bayern como protegiam o Barça!

Nuno disse...

Luis Duarte diz: "E pronto o devaneio continua, fiquei agora a saber que o rolo compressor do ano passado que humilhava tudo e todos, massacrando e goleando TODOS os adversários"

Luís, comparar uma coisa com a outra é que é um devaneio. O Bayern goleou, marcou muitos golos, mas rolo compressor é que coisa que não foi. O Real Madrid de Mourinho, quando ganhou o campeonato, também goleou muita gente e também fez mais golos que sei lá o quê. Daí a dizer que foi um rolo compressor vai uma distância incomensurável. Estou a falar da qualidade com que joga e da qualidade com que se impõe, da calma com que gere o ritmo e joga com as expectativas do adversário, etc.. Desculpa, mas o Bayern de Heynckes era uma equipa com muita vontade, muito concentrada e muito empenhada, mas não jogava metade do futebol desta equipa. Se não percebes isto, tenho pena, mas não há nada que possa fazer.

Yilmaz diz: "Ó Nuno,pensas que o Ribéry poderá ganhar a Bola de Ouro(depois do Troféu UEFA)ao Messi?.. É que está a jogar muito.. e com maior criterio,sobretudo...(e isto deve-se muito ao Guardiola)"

Talvez. O critério, muitas vezes, são os troféus, e nesse capítulo leva vantagem. E agora também já parece um jogador a sério, por isso não sei mesmo.

Fernando Pessoa, ainda não vi muito do Porto. Para já, não tenho uma opinião muito fundamentada.

Batalheiro, de certeza absoluta.

Mike Portugal disse...

Nuno,

"Estou a falar da qualidade com que joga e da qualidade com que se impõe, da calma com que gere o ritmo e joga com as expectativas do adversário, etc.. "

Sim, o Bayern irá tender para um jogo de posse como o Guardiola gosta, MAS, só será lembrado e ovacionado se ganhar títulos como o Barça. Se não os ganhar, por mais rolo compressor que seja, não terá reconhecimento.

Tudo depende dos resultados, sempre.

Diogo Laranjeira disse...

Nuno,

Apesar do bom post, discordo desta frase "Posicionalmente, fazem de facto o que têm a fazer, não procurando a bola fora do bloco adversário, mas invadindo-o e solicitando-a entre linhas. Mas depois falta algum atrevimento para mantê-la dentro do bloco".

Estamos de acordo quanto à importância que isto assume num modelo como este, mas discordo que os dois médios não possam ou não devam solicitar a bola fora do bloco (e por fora do bloco creio que te referes ao espaço de frente para a linha média). O exemplo máximo é Xavi no Barça, q conseguia atrair marcação e alternava entre o espaço entre linhas e fora do bloco. É que este tipo de jogo requer redundância, que na minha opinião também passa por isso.

No entanto, gostei do termo "invadir" porque é mais aparecer do que estar. E isso para mim é decisivo. Vemos muitas equipas que colocam jogadores entre linhas cedo mas a bola simplesmente não chega lá. O Bayern com outro tipo de dinâmica consegue lá chegar mais vezes e com mais gente.

Fiz um post sobre o Barça x Milan da época passada (4ºs de final), em que demonstrava isso mesmo. Apesar de no momento certo o Barça até ter 3 jogadores entre linhas, em fases mais precoces esse espaço até estava desocupado

Sobre manter a bola dentro do bloco também tenho as minhas dúvidas. No caso concreto do Bayern não sei se mesmo com outros jogadores a questão mudaria. O Bayern faz da mudança de corredor um dos seus principais princípios e portanto, a bola vai dentro e fora para alterar corredor (e criar situação de 1x1 ou até 2x1). Equipas como o United e o Benfica (do ano passado faziam algo semelhante, neste aspecto claro)

Diogo Laranjeira disse...

Nuno,

Apesar do bom post, discordo desta frase "Posicionalmente, fazem de facto o que têm a fazer, não procurando a bola fora do bloco adversário, mas invadindo-o e solicitando-a entre linhas. Mas depois falta algum atrevimento para mantê-la dentro do bloco".

Estamos de acordo quanto à importância que isto assume num modelo como este, mas discordo que os dois médios não possam ou não devam solicitar a bola fora do bloco (e por fora do bloco creio que te referes ao espaço de frente para a linha média). O exemplo máximo é Xavi no Barça, q conseguia atrair marcação e alternava entre o espaço entre linhas e fora do bloco. É que este tipo de jogo requer redundância, que na minha opinião também passa por isso.

No entanto, gostei do termo "invadir" porque é mais aparecer do que estar. E isso para mim é decisivo. Vemos muitas equipas que colocam jogadores entre linhas cedo mas a bola simplesmente não chega lá. O Bayern com outro tipo de dinâmica consegue lá chegar mais vezes e com mais gente.

Fiz um post sobre o Barça x Milan da época passada (4ºs de final), em que demonstrava isso mesmo. Apesar de no momento certo o Barça até ter 3 jogadores entre linhas, em fases mais precoces esse espaço até estava desocupado

Sobre manter a bola dentro do bloco também tenho as minhas dúvidas. No caso concreto do Bayern não sei se mesmo com outros jogadores a questão mudaria. O Bayern faz da mudança de corredor um dos seus principais princípios e portanto, a bola vai dentro e fora para alterar corredor (e criar situação de 1x1 ou até 2x1). Equipas como o United e o Benfica (do ano passado faziam algo semelhante, neste aspecto claro).

Diogo Laranjeira

Nuno Martins disse...

Mas honestamente alguém defende que o Messi foi o melhor jogador no mundo no ano civil de 2013? Messi que não faz um jogo de nivel elevado desde abril? Seguindo essa lógica até pode parar de jogar que vai ser o melhor todos os anos.