sexta-feira, 9 de julho de 2010

Pontos sobre o Mundial

1. Os movimentos interiores de Müller eram aquilo que tornava a equipa alemã, a atacar, uma equipa imprevisível. Ao aparecer em zonas centrais, entre os médios e os avançados, concedia não só todo o flanco para as subidas de Lahm como fornecia linhas de passe verticais, povoava zonas entre linhas e unia o sector do meio-campo ao atacante. O segundo golo frente à Argentina é a demonstração disto. É o posicionamente de Müller que permite o passe vertical e o desequílbrio ofensivo decisivo. Sem Müller, a Alemanha, do ponto de vista colectivo, era só mais uma equipa.


Argentina 0-2 Germany

Perry | Vídeo do MySpace

2. Num mundial em que um elevado número de equipas apresentou um duplo-pivot defensivo no meio-campo ou, simplesmente, dois jogadores actuando de perfil, ficaram visíveis os problemas crónicos desse tipo de estrutura. A Alemanha não conseguiu suster a posse de bola espanhola e o constante povoamento da zona entre os centrais e os médios-defensivos, afundando-se no campo; o Brasil nunca foi uma equipa compacta e concedeu sempre espaços indesejáveis, caindo contra uma Holanda que pouca qualidade tem a trocar a bola; a Inglaterra e a França nunca se encontraram; a Holanda sofreu todos os golos de bola corrida por causa dessa estrutura. Só a Espanha, e sobretudo porque tem mais tempo a bola, não tem sofrido por causa dos dois jogadores lado a lado no meio-campo. A epidemia, porém, merecia uma reflexão.

3. No jogo da Holanda contra o Brasil, não foram apenas as referências ao homem evidenciadas pelo comportamento de Heitinga, Van Bronckhorst ou De Jong que permitiram ao Brasil chegar ao golo. O espaço central deveria estar sempre protegido, mas a inclusão de dois médios defensivos, ainda por cima com este tipo de comportamento, torna esse espaço um deserto. Kaká arrasta De Jong e não há maneira de Van Bommel fechar o espaço rapidamente. Assim, forma-se uma avenida que Filipe Melo aproveita, fazendo um passe rasteiro de 40 metros a isolar Robinho, possibilidade inaceitável a este nível.


Netherlands 0-1 Brazil

Simão | Vídeo do MySpace

4. Ainda a Holanda, desta vez contra o Uruguai. O golo de Forlan evidencia o problema das linhas defensivas holandesas. Com dois médios de perfil, cria-se um buraco entre linhas que Forlan aproveita. Recebe um passe vertical e, tendo todo o tempo do mundo ao seu dispor, dribla um adversário e chuta sem oposição. Apesar de facilitado pelo erro técnico do guarda-redes holandês, a chave do lance está no espaço que o duplo-pivot defensivo dos holandeses concede.


Uruguay 1-1 Netherlands

Ricardo | Vídeo do MySpace

5. O futebol da Holanda é pobre. Da afirmação não se segue que não merecesse estar onde está. A única equipa individualmente superior ou semelhante que enfrentou foi o Brasil, que também não apresentou um futebol extraordinário. Um mundial, porém, em que esta Holanda chega tão longe, só pode ser um mundial fraco. Não houve uma única equipa, das que enfrentaram a Holanda, que soubesse aproveitar as deficiências defensivas e a pobreza ofensiva dos holandeses. Junte-se ainda a isto a forma quase fortuita como a equipa adquiriu vantagem nos seus jogos e explica-se a aparente facilidade com que chegou até à final. Sobre o momento ofensivo, é sobretudo relevante falar daquilo que não se vê. Não se vêem movimentos de aproximação e, por conseguinte, capacidades colectivas interessantes na troca da bola; não se vêem os médios a dar apoios laterais ao portador da bola, quando esta está no flanco; não se vê movimentos sem bola significativos; não se vêem ideias; não se vê imaginação; não se vê capacidade para mandar no jogo. Apesar de muitos tecerem considerações positivas em relação ao futebol dos holandeses, gabando-lhe a genialidade ofensiva e o pragmatismo com que tem abordado os jogos, a Holanda tem sido pouco mais que medíocre. A genialidade é meramente individual e o pragmatismo é uma palavra mal usada para se referirem a "muitos homens atrás da linha da bola". A Holanda não defende bem, arrisca é pouco; a Holanda não ataca bem, tem é bons atacantes.

6. Wesley Sneijder tem sido, para muitos, dos melhores jogadores do torneio. Acho que todo aquele que o afirma não tem visto bem os jogos da Holanda. Não está em causa o valor do jogador. Está em causa aquilo que tem feito. Antes de mais nada, creio que esta opinião, em muitos casos, deve estar viciada pelo facto de ele já ter cinco golos. O problema é que é preciso ter em conta como é que os marcou. Contra o Japão, um frango monumental do guarda-redes nipónico; contra a Eslováquia, de baliza aberta, após trabalho de Kuyt; contra o Brasil, um cruzamento desviado por Filipe Melo e um de cabeça, após bola parada; contra o Uruguai, às três tabelas. Sneijder ainda não marcou, por assim, dizer, um golo em que pudesse dizer-se que fora seu todo ou o principal mérito. Por isso, se avaliar-lhe a prestação pelos golos obtidos já não fazia muito sentido, menos o faz quando os golos aconteceram como aconteceram. Para além disto, Sneijder tem jogado muito menos do que têm afirmado. Raramente se aproxima do portador da bola; raramente faz movimentos horizontais para criar superioridade numérica nas linhas ou fornecer apoio ao portador da bola; não vai para a confusão, procurando uma tabela. Prefere geralmente alhear-se do jogo e procurar espaços sem ninguém, para poder receber e fazer o que bem entender. Mas com isso foge ao jogo e não ajuda a equipa a encontrar soluções mais complexas. Sneijder tem-se protegido, procurando receber a bola sempre em condições ideais. Com isso, não só tem estado menos em jogo do que poderia como não tem sido colectivamente competente. Continua, sempre que tem a bola, a evidenciar uma qualidade de passe muito boa. Mas pouco mais do que isso tem apresentado. E, sinceramente, isso não chega para estar entre os melhores do torneio. Comparar a sua prestação com a de Xavi ou Iniesta, por exemplo, não faz o menor sentido.

7. Muito se falou de Fábio Coentrão e da sua forma neste mundial. Não creio que se deva ceder à euforia. A análise fria e racional mostra que Fábio Coentrão fez um bom mundial, é verdade, que foi um contributo ofensivo relevante no flanco esquerdo português. Isso é verdade e é nisso que Coentrão é, de facto, forte. Mas está longe de ser um jogador completo e de ter mostrado, neste mundial, que estava perfeitamente adaptado à posição de lateral. Dizem os que defendem o contrário que Coentrão esteve extraordinário a defender e que, se mais provas fossem precisas, que Maicon e Dani Alves não lhe criaram grandes problemas. O que estas pessoas estão a esquecer é que Portugal defendeu quase sempre enfiado no seu meio-campo e maioritariamente em organização e em superioridade numérica. É natural, nessas condições, que os defesas estejam menos expostos. Fábio Coentrão não sentiu grandes dificuldades a defender, é verdade, mas isso, por si, não significa nada. Pelo modo como Portugal defendeu, sobretudo contra o Brasil e contra a Espanha, seria natural que assim fosse. Raramente os defesas tiveram que corrigir rapidamente o seu posicionamento, raramente ficaram em igualdade numérica ou em lances de um para um com os avançados, raramente ficaram com muito espaço para cobrir. Fábio Coentrão atacou bem e isso é digno de registo. Mas fiquemos por aqui, porque não foi verdadeiramente testado para aquilo em que ainda lhe faltam atributos.

8. Num mundial pobre, em termos tácticos, não há um treinador que tenha merecido mais do que elogios ocasionais. Os dois principais nomes são os de Marcelo Bielsa e de Joachim Löw, embora ambos tivessem dado importantes tiros no pé. Bielsa começou bem e mostrou que uma equipa individualmente menos capaz pode bater o pé aos grandes e jogar deliberadamente ao ataque. Falhou rotundamente ao abdicar das suas principais ideias na eliminatória frente ao Brasil. O jogo de posse e pressão alta dos chilenos, em 343 losango, com Matías Fernandez e Valdivia como principais referências, deu lugar ao jogo veloz, em 442, sem os dois nomes acima referidos. O medo do Brasil ou a cobardia de não ter sido fiel a si mesmo valeram a Bielsa a desilusão. A de todos os chilenos e a nossa. Quanto a Joachim Löw, tem o mérito de ter colocado a selecção alemã a jogar um futebol menos germânico do que é costume. Muito disso, como já referi, era afinal fruto do comportamento criativo de uma individualidade, mas mesmo assim os alemães eram organizados e pareciam pensar de um modo colectivo. Falhou, contudo, como já falhara no Euro 2008, a opção por um 442 clássico e a ausência de movimentos atacantes imprevisíveis, para além dos protagonizados por Thomas Müller.

9. O Uruguai chegou longe, mas nunca impressionou. A caminhada teve na arbitrariedade do calendário a sua principal causa e os uruguaios tiveram apenas o mérito de nunca perder contra equipas individualmente mais fracas. Percebeu-se, todavia, que não podiam ir muito mais longe e que, assim que tivessem pela frente um conjunto mais forte, ficariam pelo caminho. Dentro dos uruguaios, é preciso porém destacar Diego Forlan, um jogador claramente acima da média. Quaanto a Luis Suarez, para muitos uma grande revelação, não posso deixar passar a oportunidade de dizer que me parece extraordinariamente sobrevalorizado. É um jogador que finaliza bem e que aparece bem em zonas de finalização. Mas é só. É incrivelmente prejudicial na construção e toma invariavelmente más decisões com bola. A quantidade absurda de golos que marcou no campeonato holandês deve ser relativizada, tal como relativizado deve ser o seu real valor. Parece-me um jogador do estilo de Mateja Kezman, muito competente num campeonato em que se passa muito tempo perto das balizas, mas sem qualidade para grandes voos.

10. Diego Maradona e Dunga montaram equipas à imagem daquilo que foram enquanto jogadores. Por razões diferentes, nem um nem outro mostraram competência enquanto treinadores de futebol. Vem isto demonstrar que, para se ser treinador, não basta ter sido jogador, por mais genial que se tenha sido. Para Maradona, o futebol é estritamente individual e, nos dias que correm, só um milagre faria com que alguém com uma concepção do jogo deste tipo pudesse ser campeão do mundo.

11. Esta Espanha, ao contrário do que se tem dito, não é o Barcelona. Dito isto, é mais o Barcelona do que era a selecção de 2008, ao contrário do que também algumas pessoas pensam. A selecção de 2008 não trocava tanto a bola como esta, não se detinha tanto em passes e tabelas como esta; não tinha também mais do que três jogadores do Barcelona (Xavi, Iniesta e Puyol), enquanto esta tem seis ou sete; e, sobretudo, Guardiola ainda não era treinador do Barcelona na altura, com toda a revolução que isso acarreta. No entanto, o que é preciso frisar é que esta Espanha, ainda que tenha adoptado o estilo do Barcelona, não tem os automatismos da equipa de Guardiola. Assim, o que há de Barcelona nesta equipa é a quantidade absurda de jogadores do Barcelona no onze. A única coisa que esta selecção tem do Barcelona é as individualidades. Colectivamente, como disse, só o estilo é igual. Nem a competência na pressão, nem a mecanização sem bola, nem o esquema táctico são sequer parecidos. O que é igual é o estilo.

12. O estilo da Espanha é, ainda assim, a principal bandeira desta equipa. E se os espanhóis se sagrarem campeões do mundo, será porventura a vitória conceptual mais importante desde o início do século. O que os espanhóis têm mostrado ao mundo é que este estilo, este jogar para o lado e para trás, este brincar à rabia com os adversários, o ter e querer sempre a bola, a certeza do passe, a profusão de tabelas, o jogo de apoios e pelo centro do terreno é o modo mais eficaz de ser superior a qualquer adversário. Este estilo, ainda que somente o estilo, mesmo faltando toda a mecanização e entrosamento entre jogadores, mesmo faltando limar os mais diversos detalhes, é assim o primeiríssimo e mais importante princípio que uma equipa de topo deve ter. Os espanhóis, sem serem colectivamente uma equipa bem trabalhada, gozam do facto de terem jogadores que preferem jogar neste estilo. E essa preferência faz deles, quando juntos, o mais forte conjunto em prova.

5 comentários:

Tim disse...

Parabéns, conseguiu dizer mal de todos em 12 parágrafos e palpita-me que ficou muito por dizer, já que nem sequer se refere a Portugal nem às vuvuzelas.

Houve alguma coisa de bom?

Riga/V-1-Boy disse...

tim

houve, a espanha chegou a final e algo me diz que se ganhar ninguem o cala durante um mes com isso.

E como ainda nao engoliu a historia do super barça ter perdido com o porta avioes de asas abertas do mourinho, vai poder dizer que afinal ele +e que tinha razao

Blogger disse...

Puyol
Piquet
Busquets
Inisesta
Javi
Pedro

Só conto 6

E não será muito correcto incluir o David Villa nesse "lote"

Afinal o Ibrahimovic e o Chygrynskiy
estarão de saída do vosso Barcelona

Nuno disse...

Tim, falei bem da Espanha, falei bem da Alemanha, falei bem dos jogadores espanhóis, falei bem do Müller, falei bem do Forlán, falei bem do Bielsa e do Löw, falei bem de muita coisa. Não tenho culpa que tenha lido que só apontei coisas negativas.

Riga, a palermice é um dom ou compra-se no E-bay?

Blogger, disse "seis ou sete", dependendo se se quiser incluir o David Villa. Quanto ao Chygrynski, recomendo que leia sobre o assunto. Foi o presidente do Barça e não Guardiola quem o dispensou e o jogador já fez saber que Guardiola não o queria deixar ir embora. Quanto ao Ibrahimovic, parece que você é o único que sabe que ele vai sair do Barcelona...

Pedro Veloso disse...

Nuno achei uma óptima análise e sem um tom excessivamente deselegante para quem pensa o contrário, o que, se me permites, nem sempre acontece nos vossos (na maioria excelentes, concorde-se ou não com as ideias expressas) posts.

Já agora, gostaria de sublinhar a nota sobre o Luis Suárez do Uruguai. Eu que normalmente adoro avançados com espontaneidade de remate, e que reconheço que ele tem uma qualidade de disparo que me faz saltar da cadeira, tenho que admitir que é inacreditavelmente individualista, só vê baliza, chuta de todo o lado, e estraga imensas jogadas assim...