sexta-feira, 19 de janeiro de 2018

A Jogada do Século

"Quase todos os que não eram alemães acharam que nós deveríamos ter ganho. Não estivemos no nosso melhor na final, mas demos o exemplo a biliões de pessoas. Demos igualmente esperança a todos os jogadores que, como eu, não eram grandes nem fortes. Toda a filosofia de como o futebol devia ser jogado se modificou durante esse torneio. Tal filosofia era, na verdade, muito simples, e continua a sê-lo hoje. Há uma bola, e ou a tens tu ou a têm eles. Se a tiveres tu, eles não podem marcar golo. Se usares a bola bem, a probabilidade de êxito é maior do que a probabilidade de fracasso. Isto mudou o foco para a qualidade e para a técnica, enquanto antes girava tudo em torno do esforço e do trabalho."

Johan Cruyff, My Turn


Se tivesse de escolher uma jogada que, de certo modo, definisse aquilo que foi a evolução do futebol no século XX, escolhia a primeira jogada da final do campeonato do mundo de 1974. O lance é, para os padrões actuais, uma aberração: a velocidade a que se troca a bola, a ausência de zonas de pressão, as marcações individuais dos alemães, a total anarquia da organização ofensiva holandesa, etc.. E, no entanto, o mesmo lance justifica toda a evolução que o futebol sofreu nos últimos 50 anos. É sobretudo por isso que me parece justo descrevê-la como a jogada do século. Nela estão contidas as sementes da revolução laranja, e de tudo aquilo que essa revolução proporcionaria depois, e é nela - precisamente nela - que identifico a fronteira entre o velho e o novo paradigma. Não é de todo irrazoável falar de um futebol antes de Cruyff e de um futebol depois de Cruyff, e muitos já o fizeram, mas normalmente situa-se a fronteira entre essas duas épocas um pouco mais tarde. Aquilo que Cruyff veio a ser como treinador, e o pensamento que depois criaria escola, não é indissociável, contudo, daquilo que foi como jogador. A revolução que as suas ideias protagonizaram tiveram expressão maior no seu 'Dream Team' e, posteriormente, no futebol praticado pelas equipas de Guardiola, mas tudo começou na Holanda, no final da década de 60 e início da década de 70. É nessa altura, com o sucesso do Ajax entre 1969 e 1973 (finalista vencido em 69, o Ajax venceria a Taça dos Campeões Europeus em 71, 72 e 73) e com o futebol apresentado pela selecção holandesa no Mundial de 74, que tudo começa. E a forma como a Holanda chega à vantagem na final dessa competição é o dealbar desse mundo novo. É nesse lance que a parceria entre Rinus Michels e Johan Cruyff encontra o seu expoente máximo. Mesmo que a selecção germânica tenha conseguido recuperar da desvantagem, e a Holanda não se tenha sagrado campeã do mundo, o futebol vergou-se nesse momento e nunca mais foi o mesmo. 



O momento crítico do lance, aquele momento que vai contra tudo aquilo que sabemos ou julgamos saber acerca do jogo, é o momento em que Johan Cruyff, fazendo uso da liberdade e da autoridade que tinha dentro de campo, se aproxima dos defesas holandeses e, recebendo a bola de um deles, decide ser ele a pautar o jogo a partir de trás. Durante alguns segundos, Cruyff foi o jogador mais recuado da sua equipa. Enquanto os colegas trocavam a bola no meio-campo alemão, manteve-se atrás deles, analisando o que se passava à sua frente. Isto é tão surpreendente quanto ilógico, do ponto de vista actual. Mas a verdade é que cabe nesses breves instantes uma revolução inteira. Sem que o próprio Cruyff o soubesse, estava a fundar uma nova maneira de jogar futebol. Ao posicionar-se assim, Cruyff comportou-se como o treinador que seria uns anos mais tarde e, mais ainda, como aquele tipo de jogador que, de certo modo, viria a inventar: o médio-defensivo de qualidade técnica, capacidade de passe e visão de jogo invejáveis que teve em Guardiola o primeiro e mais genuíno representante. Atrás de todos os outros colegas, Cruyff pôde ver o que não veria se estivesse mais subido no terreno. A intuição de que poderia romper por entre as linhas adversárias com a bola colada ao pé dificilmente lhe assomaria ao espírito noutras circunstâncias.

Quando a bola voltou a Cruyff, já o capitão holandês tinha visto como se comportava o bloco defensivo germânico, que tipo de marcações estavam a ser exercidas (sobre si e sobre os seus colegas), e quais as fragilidades que podia explorar. A circulação aparentemente inócua da bola não só lhe deu tempo para observar o que se passava à sua frente como fez o adversário expor os seus comportamentos defensivos. Os 16 passes que antecederam a arrancada fulminante do génio holandês, que só viria a ser travado em falta dentro da área alemã, foram absolutamente decisivos para que se formasse a intuição de que, ultrapassando o seu marcador directo em zona frontal, se criavam as condições ideais para entrar na área adversária com a bola controlada. Não acredito que Cruyff tenha feito de propósito. Isto é, não acredito que lhe tenha passado pela cabeça que precisava de ter uma visão global do campo de batalha antes de tomar a iniciativa de atacar as hostes inimigas. A atitude de Cruyff, no princípio do jogo, é puramente experimental. A ideia ocorreu-lhe e pareceu-lhe boa. E foi isso que o levou a experimentá-la. Do mesmo modo, não acredito que dessa experiência se tenha seguido uma conclusão irrefutável. O que ela originou foi uma intuição. No momento em que recebe a bola e encara Berti Vogts, Cruyff não só já tinha interiorizado uma série de padrões comportamentais do adversário como teria a percepção, mais ou menos vaga, de que havia muito espaço no centro do terreno (esse espaço existias porque os holandeses tinham arrastado as marcações dos alemães para os corredores laterais, e o centro estava momentaneamente despovoado).

À luz do futebol que hoje conhecemos, toda a jogada é estranha: Cruyff a vir buscar a bola aos defesas; Cruyff a posicionar-se atrás de todos os seus colegas; Cruyff a ir no um para um quando era o último defesa; etc. Há algo de profundamente bizarro em tudo isto. E, no entanto, a facilidade com que Cruyff transforma uma jogada de bola a meio-campo numa grande penalidade a favor da sua equipa, antes de qualquer adversário ter sequer tocado na bola, é incontornável! Se parássemos o filme no momento em que Cruyff recebe a bola pela segunda vez e, garantindo que a jogada se desenrolaria junto ao solo, perguntássemos a alguém em qual das duas áreas era mais provável que, sete segundos depois, houvesse uma falta para grande penalidade, quantos se atreveriam a dizer que isso se daria na área germânica? Dado o futebol que conhecemos hoje em dia, quase todos pensariam numa perda de bola dos holandeses e num contra-ataque alemão. O futebol moderno parece, portanto, o exacto oposto desta jogada. Mas aí é que está. O que esta jogada mostra é que, contra todas as probabilidades, há benefícios em jogar assim. Cruyff é, em grande medida, responsável por nos fazer perceber que é possível triunfar contrariando tudo o que nos ensinaram. A dívida que temos para com ele é essa. Mostrou-nos que, em futebol, há uma vantagem teórica decisiva em assumir a iniciativa, e mostrou-nos também que a vontade de fazer coisas diferentes, de não repetir apenas o que os outros fazem, de inovar constantemente, de satisfazer a curiosidade, experimentando, pode beneficiar-nos de um modo inesperado. O talento de Cruyff é, em grande medida, o reflexo da sua prodigiosa intuição. Mas essa intuição não era um dom inato; era o resultado do seu inconformismo, daquela mania de se colocar insistentemente perante obstáculos diferentes, de não resolver os problemas sempre da mesma maneira, de buscar amiúde novos desafios e novos estímulos. A intuição de Cruyff, aquilo que lhe permitia responder com criatividade aos obstáculos que se lhe deparavam, desenvolveu-se em função do desconforto a que ele próprio decidiu sempre sujeitar-se. Colocando-se sistematicamente perante circunstâncias atípicas e forçando-se a descobrir um modo de lidar com cada uma delas, ia adquirindo ferramentas que lhe permitissem lidar cada vez melhor com a atipicidade inerente ao jogo de futebol. A meu ver, esta jogada mostra tudo isto de forma flagrante. É em grande parte por isso que estão contidos nela os fundamentos do futebol moderno.

2 comentários:

Rui Pedro disse...

Não posso acrescentar nada ao texto, é um tipo de debate e referências muitíssimo interessante e que nunca se vê acerca de futebol. É realmente uma pena que o Entre 10 não possa ser actualizado com mais regularidade (percebo, claro, que os autores têm outras responsabilidades e viveres)

Unknown disse...

Não ser o Cruyff a marcar o penalti é possível que diga alguma coisa da personagem e da época.