terça-feira, 5 de maio de 2015

As Pequenas Alterações de Guardiola

O Bayern de Guardiola perdeu no Dragão porque os erros individuais, num jogo como o futebol, podem ser decisivos. Dois erros deram em golo, outros intranquilizaram a equipa, e criou-se a ilusão de que a equipa alemã, se devidamente incomodada, não era capaz de contornar a pressão portista. E o Porto de Lopetegui, cuja estratégia de pressão consistiu basicamente em tentar impedir que o Bayern usasse a ligação entre os centrais e Xabi Alonso, saiu da primeira mão com uma vantagem generosa e, mais do que isso, convencido de que encontrara a receita para ultrapassar a eliminatória. Ao contrário do que foi dito por muita gente, não gostei particularmente do modo como o Porto pressionou nesse jogo, e não acho sequer que os erros individuais (os que deram em golo e os outros) tenham sido frutos da pressão e da estratégia de Lopetegui. A intenção de pressionar alto nunca foi acompanhada pela subida da linha defensiva, e só por inépcia e intranquilidade dos alemães o espaço que era dado atrás da linha de médios não foi melhor aproveitado. O Porto subiu linhas, procurou dificultar a saída de bola dos bávaros, jogou com bravura, mas não pressionou excepcionalmente bem. Disse aqui que não perceber isso era meio caminho andado para perder uma eliminatória que, não obstante a vantagem de dois golos e a quantidade de jogadores lesionados do adversário, estava longe de estar garantida.

Ora, não só se comprovou que a eliminatória não estava garantida, como foram exactamente esses defeitos no modo de pressionar do Porto que Guardiola aproveitou. Ao contrário, novamente, do que ouvi e li, não acho que Lopetegui tenha jogado de modo diferente do que fez no Dragão. Tentou sempre impedir a saída de bola dos bávaros, procurando que os seus médios pressionassem alto, e procurou sempre impedir que tal saída se fizesse pelo médio-defensivo. Sempre. A diferença foi que o Bayern conseguiu evitar essa pressão e ultrapassou sistematicamente essa linha de médios, o que no Dragão só aconteceu ocasionalmente. Sempre que o Bayern o conseguiu, o Porto foi obrigado a baixar as linhas e a iniciar a pressão mais atrás. Daí que se tenha criado a ilusão de que defendeu mais recuado e de que procurou esperar mais pelos alemães. Não foi verdade. Tentou fazer exactamente o mesmo que fizera na primeira mão. Mas, ao contrário da primeira mão, em que beneficiou de erros individuais não propriamente forçados por um comportamento colectivo relevante, o que intranquilizou os jogadores do Bayern e afectou a capacidade da equipa alemã para levar a bola para o espaço entre a linha defensiva e a linha média do Porto, a equipa de Lopetegui não foi bem sucedida nessa intenção porque o adversário soube contornar tudo isso.

Ao contrário também do que foram dizendo os comentadores do jogo, a disposição táctica do Bayern foi exactamente a mesma da primeira mão: um 433. A única diferença, do meio-campo para a frente, foi a troca posicional entre Lahm e Müller. O capitão dos bávaros jogara a primeira mão no meio-campo, de perfil com Thiago, mas jogou desta vez na linha, como extremo. Mas Müller não jogou ao lado de Lewandosky; jogou no meio-campo, de perfil com Thiago. A ideia de Guardiola parece-me óbvia: trocar um jogador que, apesar de muito inteligente e de ser posicionalmente muito bom, não é especialmente forte entre linhas, por um jogador cujos movimentos interiores e de aproximação à área que o distinguem nunca foram aproveitados na primeira mão. Müller é fortíssimo a explorar o espaço entre linhas, e foi esse espaço que o Porto concedeu na primeira mão e que o Bayern nunca conseguiu aproveitar condignamente. Para a segunda mão, Guardiola optou por manter dois alas muito abertos (neste caso, Götze e Lahm), de maneira a garantir o máximo de espaço entre os laterais e os centrais e entre os laterais e o médio defensivo, e trouxe Müller para o espaço interior, onde as suas movimentações sem bola pudessem permitir ao Bayern uma solução constante nesses espaços. Müller é possivelmente o melhor jogador do mundo a movimentar-se sem bola, e Guardiola usou esse trunfo na posição certa. Abdicou das movimentações de Müller da linha para a área, nas quais também é muito forte, para passar a contar com elas onde lhe interessava que elas ocorressem, nas costas de Oliver. Com essa pequena alteração, na qual pouca gente aliás terá reparado, a pressão do Porto, porque não era bem feita, deixou de ser incomodativa; com essa pequena alteração, Guardiola virou a eliminatória de pernas para o ar.

Para aqueles que consideram que Guardiola teve a sorte de ter um conjunto de jogadores fantásticos em Barcelona, que acham que o seu mérito termina em ter sabido encontrar um modelo de jogo adequado a um conjunto de jogadores especiais, estes 6-1 são talvez a melhor demonstração do quão errados estão. Até por não haver muita gente que dê valor ao que se pode fazer com o espaço entre linhas que os adversários dão, duvido que houvesse outro treinador capaz de ler tão bem como ele aquilo que o jogo do Dragão tinha sido e aquilo de que a sua equipa precisava para que não voltasse a sê-lo. A mim, não deixa de me surpreender. Tacticamente, continuo a dizê-lo, está a milhas de distância de qualquer outro treinador no planeta. Guardiola trocou dois jogadores e, com isso, mudou completamente as coordenadas do jogo. Acrescente-se a isso outra pequena alteração, a de ter prescindido de sair por Xabi Alonso, o que aliás já tinha acontecido em muitos momentos na primeira mão, e tem-se a melhor explicação do que se passou em Munique com o Porto. Como Guardiola disse ainda, depois da partida, Lopetegui tinha surpreendido na primeira mão, ao mandar Jackson pressionar sistematicamente Xabi Alonso. Para a segunda mão, Guardiola pediu a Xabi Alonso para fazer os mesmos movimentos, para recuar e para se posicionar na mesma entre os centrais, o que obrigava Jackson a acompanhá-lo, mas apenas para dar espaço para a bola sair pelos centrais, preferencialmente Badstuber. Alterando as dinâmicas  sem bola atrás dos médios e alterando a dinâmica da saída de bola, abdicando de usar Xabi Alonso, como habitualmente, na primeira fase de construção, Guardiola aproveitou o principal defeito da estratégia defensiva do Porto e anulou a sua principal virtude. Sem grandes mudanças, sem os principais desequilibradores da equipa, sem quatro habituais titulares, transformou um resultado muito perigoso numa vitória muito tranquila em apenas 45 minutos. Quantos treinadores do mundo o conseguiriam? Continuo a achar que há poucos privilégios, actualmente, como o de podermos desfrutar destas fabulosas lições de quem sabe tanto acerca de futebol. Veremos o que faz agora contra o Barça que criou.