Estava à espera de alguém com uma opinião tão lúcida como 
esta dissesse  alguma coisa para falar do assunto, mas pelo vistos estava difícil.  Vamos por partes. Há duas razões para toda a histeria em torno do caso, e  duas causas para que todos, ou quase todos, apontem agora o dedo ao  jogador português: a falta de respeito enquanto membro de uma equipa, e  essa coisa esquisita a que chamam patriotismo. Sobre a falta de  respeito, falarei no final, até porque é sobre isso que há mais a dizer,  e é sobre isso que todas as análises não-hipócritas ao caso devem  incidir. Mas, para já, quero falar em patriotismo. Eu percebo por que  razão é que um bolo, para saber bem, precisa de levar açúcar. Também  percebo que, para cantar, é preciso ter boa voz. O que eu não percebo, e  dificilmente virei a perceber, é por que razão é que a qualidade de uma  pessoa depende, entre outras coisas, evidentemente, dessa virtude a que  chamam patriotismo. Não sou, nem nunca fui, que me lembre, patriota. E  acho, como Oscar Wilde achava, que o patriotismo é a virtude dos  infames. Por que razão absurda é que uma pessoa tem de nutrir  sentimentos pela nação em que, por mera contingência, nasceu? Não  percebo, nem nunca percebi, o que é o amor à pátria. Honestamente. Nutro  sentimentos por um ou outro sítio onde morei, por uma cidade, vá, pelas  pessoas com quem me cruzei, etc. Mas pela pátria? Eu nem sei o que a  pátria é! Sei que tem  uma bandeira, que tem um "território", que tem  oito ou nove séculos de História. Tirando isso, pouco ou nada sei. Ser,  por outro lado, uma entidade abstracta, também não ajuda. Como é que se  tem amor por coisas abstractas? Até consigo perceber que alguém possa  ter amor por um escaravelho, por uma mesa de cabeceira, sei lá. Acho  difícil é ter amor pela filosofia de Platão, ou pelo conceito de  Infinito. A meu ver, o patriotismo não é senão uma parvoíce religiosa  que, como todas as parvoíces religiosas, serve meramente para domesticar  os impulsos anti-gregários das pessoas. Como já devem ter percebido,  não acho que faça qualquer sentido o argumento de que o que Ricardo  Carvalho fez foi errado porque faltou ao respeito à pátria, precisamente  porque a pátria não é nada. Como é que se falta ao respeito a uma coisa  que não existe? Aliás, ganharia o meu respeito o jogador que, em início  de carreira, renunciasse à selecção por achar hipócrita representar  algo pelo qual não nutrisse qualquer tipo de sentimentos. Isto tudo para  dizer que as pessoas que acham que o Ricardo Carvalho desrespeitou os  portugueses porque desrespeitou a selecção se enganam ao achar que há  algum tipo de relação entre a selecção e o país. Pois não há. No fundo,  isto não passa de um argumento puritano, um argumento que consiste em  achar que existe sacralidade no mundo, um argumento de gente católica  que, não sabendo muito bem porquê, acha condenável o comportamento  do jogador.
Católico é também o "respeitinho" com que dizem que  todos se devem comportar. É outra das ideias que nunca me entrou na  cabeça, mas admito que faça ligeiramente mais sentido que o argumento do  patriotismo. Para muitos, Ricardo Carvalho é um subordinado e, como  todo o subordinado, deve respeitar os superiores. Pois é esta relação  hierárquica que não faz sentido nenhum, a meu ver. O respeito não é do  tipo de sentimentos que se tem sem qualquer espécie de reciprocidade.  Não acredito mesmo que haja uma única pessoa que respeite quem não a  respeita. Por isso, não é o tipo de coisa que se possa exigir numa  relação hierárquica. Numa relação desse tipo, pode exigir-se obediência,  nunca respeito. E é isso que está errado nesta história toda. Para mim,  não se tratou de um problema de falta de respeito, nem do jogador para  com a equipa técnica, nem da equipa técnica para com o jogador.  Tratou-se, sim, de um conflito acerca de um ideal de liderança. Ao  chegar a Inglaterra, disse Mourinho que os jogadores ingleses, por  oposição aos latinos, que precisam de acreditar na competência do líder,  são obedientes por natureza e aceitam a liderança com base numa relação  hierárquica estipulada 
a priori.  Significa isto que há, pelo menos, dois tipos de liderança bem  distintos: uma liderança de tipo militar, com superiores hierárquicos e  subordinados de quem se exige obediência absoluta e cumprimento de  ordens, e uma liderança menos conservadora, cooperante, assente na ideia  de que os liderados têm um papel a desempenhar na liderança. Conta  ainda Mourinho que, desde cedo, percebeu que o fosso que se criava entre  treinador e jogadores não era benéfico, que ao contrário de Van Gaal,  que não se relacionava com os jogadores senão enquanto general das  tropas, ele ia na parte de trás do autocarro com os jogadores,  confraternizava com eles, partilhava problemas, etc.
É fácil de perceber que estou a distinguir o tipo de liderança de Paulo  Bento do de Mourinho, e que considero que Paulo Bento lidera muito mais à  Van Gaal. Para Mourinho, nada excede ou está acima do grupo, e nada  importa mais que o grupo. Paulo Bento, pelo contrário, lidera pela  força, pela exigência incondicional, pela imposição de regras. Mesmo que  as regras, como o próprio já o disse, não sejam impostas  ditatorialmente, mas confiando e responsabilizando. Garantiu Paulo Bento  que não entra nos quartos dos jogadores, para ver se estão deitados às  horas certas, que não controla o que comem, etc. Mas isso não faz dele  um líder menos autoritário. Não são as regras que dita, mas a posição de  superioridade em que se coloca que fazem dele o tipo de líder que é.  Quero com isto dizer que o tipo de liderança de Paulo Bento sempre me  pareceu deste género: tem pulso forte, exige acima de tudo respeito e  profissionalismo, é contra vedetismos, etc. Não que isto seja mau por  si, mas há jogadores que têm feitios que não são compatíveis com isto.  E, muito sinceramente, acho que este tipo de liderança deixou de ser a  mais adequada. O jogador de futebol não é hoje o que era há duas ou três  décadas, tem uma exposição mediática, um orgulho e uma vaidade que não  tinha antes. E, sobretudo, tem opiniões próprias, está muito mais  informado, percebe muito melhor intenções  e competências técnicas.  Perante este cenário, o único tipo de liderança que, a meu ver, faz  sentido, nos dias que correm, é uma liderança que se exerça pela  competência. Os jogadores precisam de sentir que aquele que conduz o  leme tem competência para o fazer, que não faz as coisas porque lhe  apetece, porque tem autoridade para as fazer, porque tem "feelings", mas  que dá satisfações, justifica decisões, pede conselhos, que exige dos  jogadores que compreendam as suas opções, os seus exercícios, as suas  estratégias; os jogadores precisam, actualmente, de um treinador que  mantenha com eles uma relação horizontal, que se coloque ao nível deles e  assuma que os próprios jogadores, porque são eles que têm de  interpretar no campo o que lhes vai ser pedido, podem ter opiniões  melhores, podem sentir coisas que o façam mudar de estratégia, etc.
Paulo Bento não é nada disto. Acha, porque era assim que as coisas  funcionavam há uns anos, porque foi assim que foi educado enquanto  jogador, que um treinador não tem que dar satisfações, que um treinador  está numa posição hierárquica superior, que a relação entre jogadores e  treinador é uma relação vertical. Creio que esse tipo de liderança pode  ter efeitos positivos sobretudo em jogadores humildes, em jogadores a  quem lhes interesse ver um líder forte, um líder inabalável, um líder em  quem possam sentir fé. Não creio, porém, que tenha o mesmo efeito em  jogadores mais inteligentes, em jogadores menos conservadores, em  jogadores com opiniões mais bem formadas e personalidades mais fortes,  em jogadores que creiam mais na competência do que na fé. Neste tipo de  jogadores, mais irreverentes por natureza, não creio que o tipo de  liderança que Paulo Bento preconiza funcione bem. Não foi por acaso que  se incompatibilizou com quem se incompatibilizou no passado,  precisamente os jogadores do Sporting menos capazes de aceitar a sua  liderança incondicional: Beto, não por irreverência, mas por ser o  capitão e estar acostumado a certas regalias, mas essencialmente Carlos  Martins e Vukcevic, jogadores mais irreverentes, com feitios especiais,  que precisam de estímulos de outro tipo. Paulo Bento "premiou"  frequentemente excelentes exibições de Vukcevic sentando-o no banco no  jogo seguinte. Não querendo discutir opções técnicas (e terá sido por  uma questão de opção técnica), isso só pode funcionar com alguém que  aceita servilmente as ordens de um superior. Com jogadores de  personalidades tão vincadas, é natural que não desse bom resultado. E é  aqui que é importante chegar: nem sempre a opção técnica deve ser o  primeiro critério de um treinador. Quando a opção técnica põe em causa a  integridade do grupo e a confiança no líder, então talvez não seja a  melhor opção técnica. Nesta situação concreta, Paulo Bento teria de  "mostrar" ao jogador que tinha gostado do que ele tinha feito pondo-o a  jogar. Compare-se com o exemplo de Benzema, no Real Madrid. Mourinho  teve de recorrer ao francês na segunda metade da época passada, por  força da lesão de Higuaín. O francês demorou a justificar a aposta, mas  acabou por ser importante para a equipa, sobretudo na fase final da  temporada. Este ano, voltou a começar bem a época. Mourinho não pode,  simplesmente, tirá-lo sem mais nem menos da equipa, apesar de Higuaín,  no passado, lhe ter dado garantias de um rendimento superior. Estaria a  minar a confiança que o jogador deposita em si, e até a confiança do  grupo.
Quando Paulo Bento fala em responsabilidade, esquece-se que a  responsabilidade não é unilateral, que têm tantas resposabilidades os  jogadores como os treinadores. O seu tipo de liderança é mais  autoritário do que imagina precisamente porque "exige" responsabilidade  incondicional, ou exige-a a troco de uma alegada "confiança" no atleta. O  problema é este, é não perceber que os atletas se estão borrifando para  a gratuidade da "confiança". Aquilo por que deveria trocar a  responsabilidade deles não era pela liberdade que lhes concede, mas sim  pela sua própria responsabilidade. Para exigir que os jogadores lhe  devam responsabilidade, precisaria de lhes demonstrar que ele próprio é  responsável. E isso faz-se com pequenas coisas, todas elas intimamente  relacionadas com competências de treinador: reconhecendo de que modo  pode estimular cada atleta, percebendo particularidades de feitios,  tratando cada jogador de forma diferente, consoante a sua personalidade,  conversando, justificando as suas decisões, pedindo opiniões, dando  satisfações, aproximando-se dos jogadores, entrando na sua intimidade,  falando acerca dos seus problemas, etc. Com Ricardo Carvalho, por  exemplo, talvez tivesse bastado conversar, talvez tivesse bastado  informá-lo previamente acerca das intenções da equipa técnica, talvez  tivesse bastado explicar-lhe quais as razões técnicas pelas quais se  achava melhor jogarem Pepe e Bruno Alves. Negligenciou-se a  personalidade individual de um atleta e deu no que deu. E não foi por  acaso que aconteceu com Ricardo Carvalho: tratava-se de um jogador  inteligentíssimo, com uma personalidade muito forte, e certamente com  opiniões muito claras acerca do jogo; tratava-se de um jogador  habituadíssimo (cresceu  assim) à liderança de Mourinho, que é o completo oposto da de Paulo  Bento. Eu não advinharia isto, mas agora que aconteceu, parece-me  absolutamente natural que tenha acontecido. Há um conflito evidente de  gerações, e um conflito acerca de ideias de liderança. A falta de  respeito de que Ricardo Carvalho se disse vítima não foi originada por  não ser opção para o Chipre; foi por essa decisão ter sido tomada  arbitrariamente, sem que se lhe dessem satisfações, e principalmente por  perceber que o treinador acha, por princípio, que os jogadores têm de  respeitar as suas decisões e não merecem saber as razões dessas  decisões. Mais do que uma questão de falta de respeito (quer do  treinador para com o jogador, quer do jogador para com o treinador)  creio que este episódio foi resultado de uma incompatibilidade acerca de  um ideal  de liderança.
Muito resumidamente, usar o patriotismo e o respeitinho para argumentar  que Ricardo Carvalho se comportou indevidamente é um equívoco. E a mim  irrita-me que a opinião pública seja tão favorável, neste caso, mas  também na grande maioria destes casos, ao treinador e não ao jogador.  Sempre que há episódios de insubordinação, o réu é invariavelmente o  jogador. Eu, que nunca fui treinador, mas que tenho uma experiência,  enquanto jogador, suficientemente consolidada, fico normalmente do lado  dos jogadores, neste tipo de casos. E isso não por me conseguir colocar no papel  de uns e não de outros, mas porque percebo a frustração que existe em de  ter de reconhecer liderança a alguém só porque sim. De um treinador um  jogador inteligente espera competência, ideias, e muita  responsabilidade. Se, em vez disso, percebe autoritarismo, caprichos e  obsolescência, é natural e absolutamente legítimo que lhe perca o  respeito. Este caso explica-se muito mais por estas coisas do que  propriamente por um acto irreflectido e por uma atitude injustificável.
P.S. Para a opinião pública que, apressadamente, se colocou do lado de  Paulo Bento, tenho uma pergunta que talvez incomode: e se, em vez de  Ricardo Carvalho, a coisa tivesse sucedido com Cristiano Ronaldo? Eu sei  que a probabilidade de o Ronaldo ir para o banco é menor, mas imaginem a  possibilidade. Imagine-se que passava pela cabeça de Paulo Bento deixar  Ronaldo no banco porque achava que era melhor opção ele não jogar, e  imagine-se que Ronaldo, não gostando da ideia, até porque o treinador  não a justificara, decidia abandonar o estágio. Muito sinceramente,  gostava de ver se, nessa altura, vinham com patriotismos e respeitinhos.  Aliás, actos de insubordinação de Ronaldo foram coisas que não faltaram  na era de Queiroz. E não me lembro de alguém se colocar do lado de  Queiroz nessa altura.