domingo, 3 de janeiro de 2016

O Jogo Interior, a Criatividade e o Sucesso

Quando Rúben Neves apareceu, a primeira impressão que me causou foi negativa. Quase todas as bolas que recebia eram rapidamente levadas para o flanco contrário, sem critério, a explorar às cegas o extremo aberto. Com o passar do tempo, percebi que o problema não era exactamente de Rúben Neves, mas daquilo que lhe era pedido. Não só não era o único a fazê-lo (ainda que fosse aquele que o fazia com mais frequência), como não parecia esgotar-se nisso o que sabia fazer. Hoje, Rúben Neves amadureceu e - percebe-se claramente - tem mais a dar à equipa do que a qualidade de passe longo. O Porto de Lopetegui é, porém, cada vez mais aquilo que o futebol de Rúben Neves o ano passado indiciava. O treinador espanhol gostava do jovem médio português precisamente porque lhe garantia qualidade à variação rápida de flanco, e isso é algo que sempre privilegiou acima de qualquer outra coisa. Não gostei particularmente do seu trabalho na selecção espanhola justamente porque, apesar da enorme qualidade dos jogadores que tinha ao seu dispor, a equipa parecia tender a privilegiar a variação de flanco e o passe longo em detrimento da progressão vertical, pelo centro do terreno. Com os grandes médios nesse selecção, esse privilégio não era tão acentuado e, claro, a equipa ia fazendo bem outras coisas. O mesmo aconteceu o ano passado. Com Oliver e Herrera no meio (a jogar como médios e nunca na posição de segundo avançado) o Porto fazia muito mais do que abrir no flanco e confiar no um para um dos extremos. Apesar dos lançamentos longos dos centrais e do médio defensivo, a bola entrava frequentemente nos médios (muitas vezes vinda desses extremos) e estes punham a equipa a jogar pelo meio, aproveitando os movimentos de aproximação de Jackson e o trabalho entre linhas de Brahimi (ou mesmo de um dos médios). Este ano, pelo contrário, o Porto é o rosto de Lopetegui. Já não havendo médios virtuosos a estragar os planos ao espanhol, o futebol da equipa é, finalmente, aquilo que idealiza: bola longa nos extremos, normalmente a cruzar o campo todo para dar o mínimo de tempo à basculação do adversário, o extremo a receber com qualidade, a ficar com espaço no um para um, a encarar o opositor directo, normalmente flectindo para o meio enquanto o lateral lhe entra nas costas, e os médios a fazerem movimentos verticais, de aproximação às zonas de finalização. O Porto de Lopetegui é isto e só isto. E só não foi sempre isto porque antes as unidades o disfarçavam. Os seus médios servem essencialmente para pressionar e para se aproximarem de zonas de finalização. A construção da equipa é reduzida ao mínimo, e trocada pela bola longa e pela variação constante do flanco. Numa equipa grande, mesmo com extremos muito fortes no um para um, como é o caso de Brahimi e Corona, isto é pouquíssimo.

O Sporting de Jorge Jesus é o oposto disto, e ontem, no clássico, a diferença ficou bem evidente. Jesus privilegia o jogo interior, a progressão pelo centro, apoiada, e a sua equipa não só joga de modo mais compacto e unido como as suas competências ofensivas não se limitam à capacidade individual dos seus jogadores. Mesmo com Carrillo, no início da época, a tendência era para jogar por dentro. O peruano foi sempre forte no um para um, e seria fácil a Jesus trabalhar como Lopetegui, procurando potenciar as situações de um para um com Carrillo como protagonista. A verdade é que nunca o fez, e viu-se Carrillo a jogar sistematicamente por dentro (devo, aliás, dizer que o peruano me surpreendeu, em termos de criatividade em zonas de terreno densamente povoadas). Ao chegar a Alvalade, Jesus procurou desde o início sustentar o seu modelo no jogo interior da equipa, e esse é o principal segredo do seu sucesso presente. Mesmo sem Carrillo, que decerto resolveria bastantes problemas à equipa, o Sporting é a melhor equipa do campeonato porque joga essencialmente sem extremos. Além de tudo o que Jesus faz bem (o comportamento da linha defensiva, a forma como a equipa junta as linhas sem bola, o início da construção, etc.), e que fez sempre bem ao longo dos 6 anos que passou na Luz, o jogo interior deste Sporting é talvez o mais parecido com aquele que apresentou no primeiro ano de Benfica. Ao contrário de alguns treinadores, que se transformam irremediavelmente ao longo das suas carreiras, é bom ver que Jesus pode recuperar algumas das coisas que ajudaram a consagrá-lo. Se Jesus me foi desiludindo de época para época, no Benfica, este regresso às origens merece o meu aplauso.

Que o Sporting pareça hoje uma equipa muito mais confiante e adulta do que no passado não é mérito de Jesus enquanto líder. Há sempre a tendência para achar que, quando os jogadores denotam confiança, é porque o treinador, dotado de competências psicológicas notáveis, os sabe incentivar. Não. O mérito é de Jesus enquanto treinador. Os jogadores parecem mais confiantes porque o modelo de jogo os beneficia. Como lhes é mais fácil fazerem aquilo que os faz parecer melhores, é natural que sintam e transpirem mais confiança. A liderança, em futebol, é um mito, e faz-me sempre muita confusão que se atribuam competências de líderes a treinadores que não sabem nada do jogo. Os treinadores não são feiticeiros. Não é com palavras que se lidera; é com ideias. O treinador pode berrar muito, pode ser muito amigo dos jogadores e pode até saber encorajar os seus altetas a fazer o que outros atletas não conseguem. Se o seu modelo de jogo não lhes permitir que se destaquem, os jogadores só terão confiança enquanto as circunstâncias forem favoráveis. Actualmente, os jogadores do Sporting parecem cinco anos mais experientes, mais inteligentes e mais confiantes do que há um ano atrás. Porquê? Porque o modelo de jogo em que estão inseridos potencia amplamente as suas qualidades. E, na base desse modelo de jogo, está o privilégio do jogo interior. Insistindo tanto nesse jogo interior, privilegiando os movimentos de aproximação e não os de afastamento, preferindo fazer a bola chegar ao flanco contrário com vários passes e não com um pontapé longo, fazendo com que os seus jogadores se agrupem no centro em detrimento de esticar ao máximo as linhas, o Sporting troca melhor a bola, está melhor preparado para a perda dela, mantém-se mais compacto, cria a sensação de uma maior solidariedade entre os seus jogadores e, sobretudo, trabalha melhor os seus lances de ataque, desposicionando com maior facilidade os defesas e os médios contrários. É isto tudo que dá confiança a cada um dos atletas, não as palavras mágicas do treinador durante a semana, antes do jogo ou ao intervalo.

A contratação de Bryan Ruiz foi, de resto, o momento-chave da época. Sem Ruiz, o Sporting seria uma equipa bem organizada e talentosa, e continuaria a ter, no último terço do terreno, alguns jogadores criativos, capazes de tabelar, de procurar apoios frontais e de encontrar soluções colectivas para furar as defesas adversárias. Mas, à excepção de João Mário, nenhum outro desses jogadores parece agradar a Jesus a ponto de ser uma aposta incondicional (Matheus e Gelson, pela juventude, Montero e Aquilani certamente por outras razões). Bryan Ruiz tem sido uma aposta continuada e, a meu ver, o melhor jogador do Sporting. Além das competências tácticas e da inteligência, é o jogador que melhor compreende a importância dos colegas para desequilibrar as defesas adversárias, quer os use como apoios, para tabelas, quer aproveite os seus movimentos sem bola, quer lhes solicite a desmarcação. Não há um drible que tente, por exemplo, que não seja motivado por aquilo que os colegas lhe oferecem. Em termos ofensivos, é o jogador mais criativo da equipa, e, mesmo sem ser excepcionalmente forte no um para um, é pelos seus pés que passa quase tudo o que a equipa faz de realmente invulgar. Sim, é verdade que João Mário é finalmente o médio de ataque que eu comecei por duvidar que pudesse vir a ser (desde que apareceu que me parecia poder vingar sobretudo como médio-defensivo), e é verdade que tem momentos de criatividade assinaláveis, mas é em Bryan Ruiz que reside o melhor exemplo do que é um médio-ofensivo verdadeiramente criativo. Se o modelo de jogo permite que cada um dos jogadores do Sporting potencie as suas capacidades, a criatividade de Ruiz permite que a equipa não seja apenas, sobretudo no último terço do terreno, a soma dessas capacidades assim potenciadas. O costa-riquenho dá à equipa aquilo que Jesus, no passado, nem sempre valorizou, e é também por isso que o Sporting me parece o principal candidato à conquista do título de campeão. Quando a um modelo de jogo baseado no jogo interior se junta esta quantidade de criatividade, é natural que uma coisa potencie a outra, e que a equipa fique mais próxima do sucesso.