Falar em hegemonia a respeito do futebol espanhol pode parecer, nos dias que correm, profundamente redundante. Depois da conquista de mais um campeonato europeu, poucos se atreverão a não conceder à Espanha esse estatuto. Há 4 anos, porém, quando tudo isto começou, poucos, como nós, arriscavam em votar no favoritismo espanhol. Entretanto, e reagindo ao futebol espanhol como se tem reagido ao Barcelona de Guardiola, insiste-se que qualquer adversário poderoso vencerá esta equipa, e que outros tempos se sucederão aos actuais. Não tenho dúvidas de que a selecção espanhola não ganhará tudo o que há para ganhar, nos próximos anos. Do que tenho dúvidas é de que, tão depressa, apareça um futebol capaz de se sobrepor a este, e de que a Espanha deixe de estar no lote dos grandes favoritos à vitória nas competições em que participar nos próximos... 20 anos. Para muitos, estes três títulos representam uma fase, uma hegemonia temporária, como tantas outras no passado, protagonizadas por outras selecções, que necessariamente será interrompida. Para mim, aquilo a que se assiste agora não tem paralelo na História do Futebol, precisamente porque não se pode medir-lhe a manifestação apenas pelos troféus que tem amealhado. Por trás das vitórias há um modelo fortemente enraízado, um estilo de jogo que é dominador, que condiciona irremediavelmente qualquer que seja o adversário, e que faz daqueles que o põem em prática mentalmente superiores. O jogador espanhol é hoje, pelo próprio estilo de jogo que pratica, superior, em termos de mentalidade, aos seus adversários, como em tempos os germânicos o eram. Para que a Espanha deixe de ser a principal favorita à vitória em cada prova que participar, não basta esperar que esta geração acabe, até porque esta geração tem bem mais do que onze jogadores competentes, e a esta geração, já se percebeu, sucederão outras igualmente talentosas. Também não bastará que seja derrotada na próxima grande competição, porque sabe-se que voltarão a ser favoritos na seguinte, apesar da derrota. Não bastará, ainda, que uma selecção qualquer, muitíssimo talentosa, apareça nos próximos anos, pois essa selecção, pelo carácter extraordinário do seu surgimento, desaparecerá sem deixar legado, enquanto os espanhóis, com novas gerações, continuarão a reinar. Para que a Espanha venha a ter quem lhe discuta a hegemonia, há que iniciar um trabalho a nível de formação, que não está iniciado em lugar algum, tanto quanto sei, muitíssimo parecido com aquele que foi iniciado há duas ou três décadas no país vizinho, e que agora está finalmente a dar os seus frutos. Daí dizer que a hegemonia espanhola terá ainda, pelo menos, 20 anos de vida.
Vem isto a propósito não do recente campeonato europeu ganho pelos espanhóis, mas pelo recente campeonato europeu de sub-19 ganho - imagine-se - pelos espanhóis. Que eu saiba, não há memória de haver uma selecção que dominasse tanto o panorama futebolístico como esta Espanha na última década, ganhando tudo o que havia para ganhar nos últimos 4 anos, a nível sénior, e ganhando quase tudo (quando não ganha, fica perto, e é sempre favorita) nos escalões mais jovens. Permitam-me a comparação com o hóquei em patins. Desde que me lembro de ver hóquei, havia apenas 4 selecções capazes de discutir títulos: Argentina, Itália, Portugal e Espanha. Explica-se isto de forma relativamente simples, pois eram países com tradição na modalidade, que iam formando, geração após geração, jogadores de qualidade em quantidades suficientes para poderem manter equipas competitivas. No caso do hóquei, que é um jogo muito mais simples que o futebol, a excelência colectiva terá sido atingida muito mais rapidamente do que no futebol, e depressa se formaram 4 selecções hegemónicas. Nenhuma outra selecção, a menos que inicie um trabalho de formação de fundo, consegue competir, de forma consistente, ao longo de muitos anos, com estas selecções. Em futebol, pelo contrário, até praticamente ao fim do século passado, faltava muito para que a excelência colectiva fosse atingida, e nações com bases de recrutamento muito grandes podiam ser consideradas favoritas, mesmo apresentando um futebol fraco, em termos colectivos. Hoje em dia já não é assim. E não voltará a ser assim. Arrisco mesmo a dizer que o Brasil, a menos que revolucione o seu futebol, não voltará a ser verdadeiramente favorito à vitória numa grande competição. Claro que poderá ganhar um campeonato ou outro, mas dificilmente voltará a ser a potência que foi se não modificar as suas prioridades. O que se fez em Espanha, nas últimas décadas, foi compreender o jogo, compreender aquilo que o jogo exigia, e formatar os seus praticantes para fazerem face a essas exigências. Hoje olha-se para uma competição de sub-19, por exemplo, e no lugar de miúdos imberbes, alguns com potencial, outros nem tanto, e uns mais afoitos que outros, vêem-se jogadores de futebol. Compara-se a selecção espanhola com as outras e, em vez de se conseguir isolar um ou outro miúdo com capacidades acima da média, capta-se um colectivo completamente distinto, em que todos os elementos possuem uma maturidade táctica acima do normal. Isso só é possível porque o futebol espanhol, em vez de tentar lapidar cada um dos diamantes que, por sorte, iam aparecendo, como se acredita, ainda hoje, que deve ser o trabalho de formação, passou a criar, através de uma concepção do jogo mais elevada, os seus próprios diamantes. Aquilo que distingue este futebol espanhol, cuja hegemonia actual não encontra paralelo em toda a História do jogo, é precisamente a compreensão de que, num jogo colectivo, como o é o futebol, a formação serve para criar talentos, no sentido literal da palavra "criar", e não apenas para permitir que certos talentos brutos, que existem antes de passarem pela fase de formação, adquiram competências que lhes permitam jogar ao mais alto nível. Em Espanha, não se acredita em geração espontânea, e isso faz toda a diferença.
A respeito, mais concretamente, deste europeu de sub-19, tenho várias coisas a dizer. Em primeiro lugar, que são treinadores como Edgar Borges que explicam por que razão Portugal nunca poderá chegar aos calcanhares do que se faz em Espanha. É verdade que ao seleccionador nacional só se lhe deu para as mãos um conjunto de jogadores, com a qualidade duvidosa que têm (ainda estou para perceber por que é que João Carlos, jogador do Liverpool, não foi chamado), a maior parte deles, mas optar, como o fez contra a Espanha, por uma marcação individual aos homens do meio-campo espanhol diz tudo sobre Edgar Borges. Na minha opinião, quem escolhe jogar assim, seja contra quem for, não merece uma segunda oportunidade. Poderia dizer muito mais, mas esta decisão táctica diz praticamente tudo. Quanto a valores individuais, aproveitar-se-ão, entre os portugueses, dois ou três. O melhor deles, o avançado Betinho, praticamente nem se viu, tal foi a pobreza, em termos de construção de jogo, da equipa. Ricardo Esgaio talvez tenha futuro, mas só como lateral-direito, como joga no Sporting. Como extremo, é banalíssimo. Tiago Ilori, se bem trabalhado, e se se modificarem certos preconceitos a respeito de defesas centrais, também dará jogador. Daniel Martins, o lateral-esquerdo do Benfica, também tem algumas características interessantes. Sobre Rafael Veloso, o guarda-redes, é preciso saber como evoluirá, em termos de mentalidade. Quanto aos restantes, sinceramente, não lhes auguro futuros espantosos. A excepção poderá ser o capitão João Mário, de quem não sou particularmente adepto, mas a quem reconheço alguns atributos importantes. João Mário não tem classe; tem tiques de quem tem classe. Se um dia esses tiques derem lugar a um jogador que compreenda quando os deve ter e quando os não deve, talvez venha a poder ser jogador. Para já, é apenas irritante. André Gomes, médio do Benfica, sabe jogar, mas tem contra si o tamanho exagerado, a pouca agilidade, e algumas deficiências técnicas, sobretudo resultantes desses atributos físicos indesejados. Quanto a Bruma, não dará em nada, ainda que, nos últimos anos, tenham chegado a Alvalade propostas milionárias para o levar. Ivan Cavaleiro é idêntico, mas com menos propostas milionárias. Sobre Agostinho Cá, não vou falar porque ainda estou a tentar compreender por que razão é que o Barcelona contratou, para jogar na sua equipa B, alguém que não é, nunca foi, nem nunca será jogador de futebol.
Sobre a Espanha, que é realmente a selecção sobre a qual se deve falar, tal foi o abismo que a separou das restantes, devo dizer que continuam a ser feitas observações precipitadas. Embora os espanhóis tenham mostrado ao mundo que o futebol é um jogo colectivo, e embora todos se apressem a enaltecer as virtudes colectivas desta equipa, quando chega a hora de falar em individualidades, fala-se sempre daquelas que menos atributos colectivos manifestaram. Para a grande maioria das pessoas, as duas principais figuras do torneio foram o goleador máximo da prova, Jesé Rodriguez, e aquele que é considerado o maior talento desta geração, Gerard Delofeu. Não porque é costume ser do contra, mas porque dou mais importância a aspectos colectivos, não foram estes os jogadores que mais me impressionaram. Aliás, não acredito mesmo que Jesé Rodriguez, por exemplo, venha a ter um futuro invejável. É um jogador habilidoso, mas fraco em termos de decisões. Delofeu, por sua vez, é parecido, embora mais rápido, mais forte no um para um, e, sobretudo, joga no Barcelona. Estando no Barcelona, pode aprender o que ainda não sabe. Se o conseguir, saberá como temperar as suas iniciativas um pouco melhor. É que, para já, é apenas um jogador muito forte em termos individuais. O seu principal problema, a meu ver, é não saber decidir quando deve ou não deve apostar em acções individuais. Sempre que Guardiola o colocou em campo, este ano, evidenciou precisamente isso. Na altura, pensei que fosse nervosismo. Depois deste Campeonato da Europa, percebi que era feitio. Gerard Delofeu esteve endiabrado, sim, mas porque apanhou defesas que lhe permitiram as diabruras. Daqui a uns anos deixará de o conseguir fazer com a facilidade com que o fez, e nessa altura terá de apresentar argumentos que não apresentou neste campeonato. Como disse, outros foram os jogadores que me impressionaram. Desde logo, o defesa-esquerdo do Barcelona, Grimaldo. Não é um jogador com grandes valências atléticas, mas sabe sempre o que fazer com bola, jogando invariavelmente no apoio, e, sem grandes correrias, nem um pulmão invejável, dá a profundidade certa à equipa no momento certo. De resto, podia falar em qualquer um dos do meio-campo (o capitão Campaña, médio-defensivo elegante; Suso, médio do Liverpool com um pé esquerdo notável; ou mesmo Ñiguez, igualmente esquerdino, e muitíssimo inteligente em todas as suas acções com bola), todos eles fortíssimos no que toca a decisões, e todos eles bons de bola, mas vou isolar dois, porventura os dois mais pequenos: Oliver Torres, do Atlético de Madrid, e Denis Suárez, do Manchester City. Esqueçam tudo o que acham que sabem sobre futebol, e ponham os olhos nestes dois pequenos jogadores. A forma como tratam a bola, a agilidade, a competência técnica, a facilidade no drible: é isto que distingue o actual futebol espanhol. Pouco jogaram juntos, é verdade (Denis Suárez foi quase sempre suplente), mas os adeptos mereciam que tal tivesse acontecido. Sem bola, procuram dar sempre um apoio vertical ao médio-defensivo, ou uma linha de passe ao lateral. Movimentam-se entre linhas como ninguém, tabelam, tiram adversários da frente com facilidade. Duas pequenas maravilhas! Continuo sem perceber como é que, dando a Espanha tamanho exemplo de competência em todos os escalões, se insiste em não povoar o meio-campo com jogadores com estas características. Oliver Torres e Denis Suárez são o paradigma do médio-ofensivo do futuro, um paradigma que demorou a chegar, mas que Xavi e Iniesta trataram de deixar claro que tinha mesmo de chegar. Se há uns anos se desconfiava que mais do que um jogador com estas características era prejudicial a uma equipa, os dois catalães ensinaram ao mundo de que era com dois assim, se não mesmo com mais, que tinha de se jogar futebol. Estes dois são herdeiros de Xavi e Iniesta, e seria natural que, ainda que não sejam actualmente aqueles de quem mais se fala, daqui a uns anos estivessem na ribalta do futebol europeu.