sábado, 19 de março de 2016

Apontamentos para uma Estética não-Allegriana

1. O Bayern-Juventus da passada quarta-feira não foi um grande jogo de futebol, ao contrário do que tinha acontecido na primeira mão em Turim, mas serve bem para mostrar de que modo os golos monopolizam as descrições do que foi uma partida de futebol e de que modo a marcha do marcador pode não espelhar nada do que se passou nas quatro linhas. O jogo teve quatro momentos distintos, a meu ver: 1) a primeira parte, em que o Bayern, mesmo com alguns problemas de criatividade numa segunda fase de construção, foi melhor, não obstante os dois golos da Juventus; 2) os primeiros 20/25 minutos da segunda parte, em que a Juventus foi melhor, não obstante não ter marcado nas várias ocasiões que soube criar; 3) o resto da segunda parte, em que o Bayern, sem jogar bem, forçou as iniciativas individuais dos seus jogadores mais habilidosos, colocou muita gente na área, encostou a Juventus nos últimos 15 metros e conseguiu chegar ao empate; 4) o prolongamento, em que o Bayern voltou a ser a equipa que é e acabou por criar as situações de golo que lhe valeram o apuramento. 

2. Para quase toda a gente, a Juventus justificou a vantagem ao intervalo, defendendo bem e aproveitando o balanceamento ofensivo do Bayern para lançar os seus contra-ataques. Luís Freitas Lobo, por exemplo, fartou-se de criticar os riscos que a equipa de Guardiola ia correndo, apesar de a Juventus não conseguir produzir um (um único!!) contra-ataque perigoso. E não se coibiu de justificar o segundo golo dos italianos com a incapacidade da transição defensiva dos alemães. A sério? Num lance que começa com 3 avançados contra 5 defesas, no qual o portador da bola só tem um colega à frente da linha da bola contra quatro defesas adversários, no qual Morata inventa praticamente sozinho a situação de golo, passando por três adversários e deixando Cuadrado isolado, no qual tanto Alaba como Benatia podiam ter resolvido o lance, parando o espanhol em falta, é a transição defensiva dos alemães que merece censura?

3. À excepção desse lance prodigioso de Morata, do qual não há estratégia com que o treinador adversário se possa precaver, a Juventus teve um lance de contra-ataque digno de nota: aquele em que Pogba se conseguiu soltar pela esquerda, já perto do final da primeira parte, e acabou por cruzar rasteiro, com Cuadrado a aparecer ao segundo poste e Neuer a fazer uma excelente defesa. Um único lance, já a acabar a primeira parte, com o resultado a favor a ajudar à desconcentração dos bávaros, é motivo para se dizer que a Juventus fez mais do que defender, nessa primeira parte? Não, não é. A Juventus teve a sorte do jogo, apanhando-se a ganhar após um erro não-forçado de Alaba (e Neuer também não fica isento de culpas), num passe de Khedira para Lichtsteiner que, em condições normais, originaria uma recuperação de bola dos alemães, e dilatando depois a vantagem no lance de Morata já comentado. Não fez mais nada de relevante, em termos ofensivos, nessa primeira parte, até ao lance de Pogba pela esquerda. Mentira: quase que aproveitava um erro de Neuer, a sair a jogar, que deixava Morata isolado. É mesmo isto que as pessoas consideram uma boa primeira parte?

4. Dirão que, mesmo que não tenha atacado bem, a Juventus defendeu bem, e isso precipitou o resto. Deixem-me ser frontal: defensivamente, a Juventus foi miserável. Se calhar, é preciso repetir: miserável! Podia dar vários exemplos, aliás recorrentes em todo o jogo. Veja-se o lance do primeiro golo do Bayern. Antes de a bola chegar a Douglas Costa, que fez o cruzamento para o golo de Lewandowski, a jogada desenvolveu-se da direita para a esquerda, no meio-campo defensivo da Juventus, até que um passe longo descobriu Coman, que atrasou para o brasileiro. Durante todo esse tempo, a Juventus tem 8 (8!) jogadores dentro da área, formando mais ou menos, sem grande critério, uma linha defensiva. A sério que acham que amontoar jogadores ao pé da baliza, sem estarem devidamente alinhados e sem um critério de espaço entre eles devidamente uniforme, é defender bem?

5. Dirão que isso aconteceu na fase final do jogo, quando as forças começaram a faltar e o Bayern estava a começar a recorrer às acções individuais de Ribery, Coman e Douglas Costa, e aos cruzamentos para a área. Posso dar exemplos de coisas parecidas na primeira parte. A Juventus apresentou-se em 541 não para ocupar melhor certos espaços defensivos, mas porque o Bayern, ao colocar Müller muitas vezes perto de Lewandowski, fazia com que a arrumação dos defesas italianos, que se organizavam em função dos adversários que perseguiam individualmente, criasse a ilusão de que se formava uma defesa a cinco. Alex Sandro entrou em campo com uma única missão: vigiar Douglas Costa. Não fez mais nada. Andou atrás dele. E, como o brasileiro passou muito tempo aberto no flanco, houve momentos em que a Juventus jogou literalmente com dois defesas-esquerdos. Atenção, não jogou com dois jogadores que são defesas esquerdos de origem, um à frente do outro ou um ao lado do outro. Jogou com dois defesas esquerdos no mesmo espaço, um às cavalitas do outro. As perseguições individuais eram tão flagrantes, entre os defesas italianos, que não foram poucas as vezes que Barzagli e Evra saíram da linha defensiva para virem perseguir o avançado alemão que lhes calhava marcar. Há um momento, a meio da primeira parte, em que Ribery decide soltar-se do flanco e ir até ao lado direito, até muito perto de Lahm. Como, no início do lance, Barzagli definiu a marcação ao francês, foi atrás dele. Sim, houve um momento, com a bola no meio-campo, em que o Barzagli, que era supostamente o central do lado direito, estava ao pé do Pogba, na ala esquerda. Isto é organização defensiva de excelência em que parte do mundo?

6. Durante os primeiros 70 minutos, Luís Freitas Lobo repetiu um dos seus chavões preferidos: que Allegri é o melhor treinador italiano da actualidade. Ainda que tenha mudado o discurso depois de o Bayern marcar, como bom cata-vento que é, Freitas Lobo cometeu a atrocidade de dizer que um treinador cuja equipa se comporta como descrito acima é o melhor treinador italiano da actualidade. Não terá sido por acaso, aliás, que Arrigo Sacchi tenha dito, há poucos dias, tão mal de Allegri. Para Freitas Lobo, porém, apinhar jogadores dentro da área e à frente dela, sem outro critério que não a referência dos adversários, é arte (sim, também disse que defender assim era arte). Freitas Lobo é só um idiota a quem deram tempo de antena. Que as mesmas ideias se registem em quase toda a gente que viu o jogo é que é grave. A Juventus não defendeu bem; defendeu com muitos. Embora as duas coisas possam produzir resultados parecidos, a diferença entre uma coisa e outra é incomensurável. Chamar "treinador" a Allegri é, de resto, uma hipérbole.

7. Dirão que as duas coisas (defender bem e defender com muitos) não são assim tão diferentes, pois o Bayern não soube tirar partido dessa eventual desorganização. Soube, soube. As pessoas é que não sabem ver um jogo de futebol. A primeira oportunidade de golo é do Bayern. Quase ninguém se lembra desse lance porque Arturo Vidal falhou a recepção (é o primeiro lance neste vídeo). Se a tivesse acertado, ficava dentro da área, sozinho com Buffon pela frente, e possivelmente faria o primeiro golo do jogo, mudando toda a história do mesmo. Esse lance é todo potenciado pela desorganização defensiva da Juventus. Douglas Costa recebe na linha, e flecte para o meio. À sua volta, num raio de 5 metros, tem Alex Sandro, Evra, Hernanes, Khedira e Pogba (este à frente da linha da bola), completamente desinteressados do espaço que os separa da linha defensiva. Além dos dois defesas esquerdos, um em cima do outro (no início da jogada, Evra está a dois metros de Alex Sandro, completamente alheado de tudo), não há linha de meio-campo, não há cobertura recuada ao médio que fecha a esquerda (Khedira está à frente de Hernanes e não alguns metros atrás, como devia), o médio direito não acompanha o restante posicionamento defensivo do meio-campo (Cuadrado está interessado em perseguir Vidal e fica a cerca de 15 metros de Khedira), e o buraco entre o último central e o lateral é absurdo (Lichtsteiner, preocupado com Ribery, que está aberto no flanco, está a cerca de 20 metros de Barzagli, que está perto de Bonucci, o qual descaíra para a esquerda para fazer a cobertura correcta ao lateral). Foi por esse buraco que Vidal entrou e foi aí que o passe de Douglas Costa o descobriu. Estava criada a primeira situação clara de golo. Ninguém fala dela, e é a jogada que melhor explica o que foi a primeira parte do jogo: uma equipa a tentar jogar e a outra a amontoar jogadores.

8. As pessoas falam da estratégia defensiva da Juventus (como se viu, foi miserável), falam do contra-ataque (como se viu, praticamente não existiu) e falam da pressão que conseguiu impor, evitando que o Bayern saísse a jogar como gosta. Também aqui não devem ter visto bem o jogo. O Bayern conseguiu sair a jogar quase sempre. Teve falhas, sim, mas recusou-se a sair de outra forma e, de um modo geral, conseguiu impor o seu jogo habitual. E, tirando a falha de Neuer (precipitada pelo mau posicionamento de Xabi Alonso, que se esconde atrás de Morata e não dá a linha de passe que devia) a qual deixa Morata isolado, nenhuma das iniciativas de pressão alta dos italianos lhes foi particularmente útil. Umas vezes com mais qualidade do que outras, o Bayern saiu a jogar e obrigou invariavelmente a Juventus a baixar as linhas. Onde o Bayern não esteve bem foi na segunda fase de criação. Depois de sair, impunha-se que soubesse construir melhor no meio-campo adversário, e isso não conseguiu fazer. Convenha-se que, sem Thiago ou Lahm nessa zona do terreno, a equipa não o consegue fazer bem. É, a meu ver, a principal fragilidade da equipa de Guardiola neste momento, muito potenciada pelas lesões que têm afectado o plantel (Lahm está a jogar na defesa por isso, e Thiago não está propriamente com o melhor dos ritmos competitivos). Não obstante, construiu mais uma excelente ocasião de golo na primeira parte, que acabou com uma boa defesa de Buffon. Achar que o resultado ao intervalo espelhava o que as duas equipas tinham feito em campo é não saber distinguir o futebol praticado dos golos marcados pelas duas equipas.

9. A Juventus só foi a melhor equipa em campo no arranque da segunda parte. Por intranquilidade dos bávaros, que pareciam pressionados pela necessidade de fazer o primeiro golo rapidamente, falharam muito ao nível do passe e permitiram aos italianos algumas jogadas interessantes. Aí, sim, a Juventus conseguiu alguns lances minimamente decentes e - diga-se - podia mesmo ter sentenciado a eliminatória. Guardiola esperou o máximo que podia (viu-se o desagrado na sua cara num lance em que Neuer pontapeia a bola para a frente sem nexo) e acabou por decidir abdicar de alguns dos seus princípios para tentar incomodar os italianos, agora muito mais confortáveis, de outro modo. A partir do momento em que Coman entrou, o Bayern colocou ainda mais jogadores na frente e entregou a criação quer aos dois alas (Ribery e Coman), quer a Douglas Costa, que passou a jogar por fora do bloco defensivo da Juventus, quase como único médio. A mudança teve duas intenções: 1) forçar os italianos a recuar ao máximo para dentro da sua área, pois havia agora ainda mais jogadores bávaros em posições avançadas; 2) forçar situações de cruzamento para a molhada que se criara como consequência desse recuo. Ainda que tenha perdido discernimento, e tenha acumulado muitas acções sem nexo, a equipa de Guardiola conseguiu exactamente aquilo que a mudança pressupunha. E, dada a desorganização defensiva dos italianos, era uma questão de tempo até que os golos surgissem. Surgiram na sequência de dois cruzamentos, mas podiam ter surgido na sequência de remates à entrada da área (a Juventus permitiu esse espaço) ou por penetrações pelo solo (há pelo menos um passe de Douglas Costa que deixa Lahm em excelente posição dentro da área, mas a recepção trai o alemão). 

10. No prolongamento, o Bayern voltou a jogar como sabe e como o fizera na primeira parte. Convicto de que aquilo que acontecera nessa primeira parte foi uma anormalidade, voltou ao que sabe fazer e controlou o jogo como quis. É assim que se joga futebol, seja contra que equipa for. Que isso só tenha sido eficaz no prolongamento é uma contingência da natureza aleatória que caracteriza o jogo. O golo de Thiago é o exemplo perfeito do que poderia ter acontecido a qualquer altura, na primeira parte, mas que não aconteceu por acaso (e talvez porque Thiago não estava em campo).

11. A defesa do Bayern, na segunda parte, era constituída por Lahm (1,70m), Kimmich (1,76m), Alaba (1,80m) e Bernat (1,70m). Sim, é possível jogar futebol ao mais alto nível com uma defesa composta por jogadores pequenos, pouco intensos e pouco agressivos. De resto, é um privilégio poder ver o que um miúdo de 21 anos consegue fazer com a bola, numa posição na qual nunca jogou, constantemente exposto ao risco. A qualidade das decisões de Kimmich, sempre à procura de um colega atrás da primeira linha de pressão do adversário, é qualquer coisa de extraordinário. Kimmich é médio de origem, e será decerto como médio que fará carreira. Para aqueles que adoram o Renato Sanches, um médio a sério é alguém que joga como Kimmich. É por jogar como joga, de cabeça levantada, à procura de colegas, e por ser tão criterioso no passe como é, que tem a facilidade que tem para jogar como central. De resto, é possível não admirar o futebol praticado pelas equipas de Guardiola. Mas é preciso ser realmente muito tacanho para não admirar a sua coragem...