quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Entrevista

Um amigo jornalista que começou a visitar com frequência blogues de futebol nos últimos tempos, perfilhando a ideia inteligente de que a utilidade de qualquer discussão se baseia na troca de argumentos, perguntou-me outro dia o porquê das recentes hostilidades entre o Filipe do Jogo Directo e eu. Segundo ele, reproduzindo ideias que outras pessoas já expressaram, o debate sobre futebol tem a ganhar com as discussões que nós temos e seria interessante mantê-las. Disse-lhe que os argumentos são a maior arma numa discussão e que há pessoas que assumem posições fáceis quando os argumentos as conduzem para becos sem saída. Como ele não percebeu o que eu queria dizer, iniciou uma conversa que, pelo vício da sua profissão, aqui reproduzo em forma de entrevista. Para o distinguir, chamemos-lhe Rei de Copas.

Rei de Copas: É verdade que o Filipe te censurou comentários por não lhe "agradar a conversa", como se costuma dizer?

Nuno: Só ele poderá responder a essa pergunta. Isto é, só ele poderá dizer qual a razão pela qual censurou um comentário, mas não consigo encontrar explicação melhor.

Rei de Copas: E em que consistiam os comentários censurados?

Nuno: Era a conclusão de uma conversa - mais uma - sobre o método de análise que ele recentemente adoptou para aferir rendimentos individuais. Estávamos a falar do Maniche e sugeri, como cenário hipotético, uma análise feita ao jogo do Mascherano contra o Bétis, para a Taça do Rei. Nesse jogo, o Mascherano esteve impecável em termos de passe e teve certamente uma percentagem de passes completados na ordem dos 80%, no mínimo. Teci dois argumentos para defender que os números do Mascherano não implicavam que tivesse feito uma boa partida. O primeiro consistia em dizer que percentagem de passes completados não traduz, de maneira nenhuma, o rendimento de um jogador em termos de passe, seja ele quem for, pois não nos informa se a opção de passe foi a melhor em cada situação. Acha o Filipe - e esse é apenas um dos erros do seu método que aponto - que a percentagem de passes completados indica, com um grau elevado de precisão, o rendimento de um jogador da linha média. Aliás, é essa a principal razão para gabar sucessivamente as exibições do Maniche. Ele pensa assim porque acha que a exibição de um médio depende em muito da sua capacidade de dar seguimento aos lances que lhe passam pelos pés. Por trás dessa ideia, está outra que consiste em pensar que um jogador que consiga endereçar a bola a um colega, seja ele qual for e esteja ele em que condições estiver, beneficia a equipa em termos de posse e circulação de bola. Ora, isto não faz sentido.

Rei de Copas: Não sei se estás a ser muito claro. Então achas que a posse de bola depende de mais coisas do que da capacidade de preservá-la?

Nuno: Sim. Para muita gente, manter a posse de bola depende da capacidade de conservá-la. Discordo inteiramente disto. Acho que, em futebol, a posse de bola tem duas componentes: a componente de conservação e a componente de risco, chamemos-lhe assim. Um central, por exemplo, quando sai a jogador tem invariavelmente duas ou três opções fáceis. Se optar por nunca arriscar um passe mais vertical, se jogar sempre com o colega do centro da defesa, ou com o lateral do seu lado, falhará pouquíssimos passes. O mesmo acontece num médio. Um médio que opte por jogar para o lado ou para trás participará com qualidade na posse de bola da equipa, mas apenas na sua componente de conservação. Ora, há alturas em que a melhor opção é um passe para a frente, ou para uma zona mais povoada, ou para um colega com menos espaço para jogar. Às vezes, em situações específicas, o ideal é procurar um apoio frontal, procurar chamar o adversário, procurar invadir espaços curtos. Isto comporta riscos que não se coadunam com a componente de conservação da posse de bola, mas riscos que são necessários se, com efeito, se quer fazer da posse de bola algo mais do que mantê-la. Aliás, a única função da componente de conservação é criar condições ideais para que a componente de risco seja assumida.

Rei de Copas: Então, nesse caso, o rendimento de um jogador de meio-campo depende da forma como avalia cada situação e da opção entre conservar ou arriscar?

Nuno: Não. A sua qualidade em posse depende disso, mas o rendimento de um jogador depende de muitas outras coisas. É por isso que o método do Filipe é altamente redutor. E, por ser altamente redutor, é altamente falacioso.

Rei de Copas: Nesse caso, a sua avaliação do rendimento do Maniche está errada de duas maneiras. Está errada porque se reduz a um elemento do jogo e está errada porque não interpreta sequer correctamente esse elemento. É isto?

Nuno: Sim. Para ele, o rendimento do Maniche é bom porque ele completa muitos passes. Isto não indica nada senão que ele completa muitos passes. Não indica se cada um desses passes correspondeu à melhor opção em cada momento, porque isso só a observação empírica e a análise descritiva de cada lance podem perceber. Além de reduzir o rendimento do jogador àquilo que ele faz com bola. É aqui que entra o segundo argumento que utilizei. O exemplo do Mascherano não foi inocente. Utilizei-o porque ele, apesar de ter estado impecável em termos de percentagem de passes completados, fez um jogo abominável. Como já referi, mesmo com bola, não fez um jogo extraordinário, ainda que não tenha comprometido. Mas sem bola foi absurdo. Posicionalmente, esteve uma lástima. Não só teve culpa em dois golos sofridos, como esteve invariavelmente mal colocado: pressionava à frente dos avançados, ia atrás de jogadores adversários em vez de estar preocupado com a posição relativamente aos colegas, não fornecia coberturas nem apoios recuados, estava permanentemente desconcentrado, fazia faltas desnecessárias, etc. Ora, isto a análise numérica do Filipe não contempla, porque não há maneira de transformar comportamentos em números. E não contemplar isto é perder de vista algo muito importante. A exibição do Mascherano foi horrível, mas, usando o método de análise do Filipe, teria sido bastante boa.

Rei de Copas: E foi essa sugestão que despoletou a hostilidade?

Nuno: Assim parece. A primeira reacção foi defender-se com ironia, acusando-me de estar a afirmar que ele tinha feito uma avaliação ao Mascherano que, na verdade, não tinha acontecido. A acusação é tão idiota que, vindo de uma pessoa inteligente, significa apenas que não tinha outra maneira de defender o seu argumento. Reforcei a ideia de que aquele era um cenário hipotético, de que era eu quem estava a criar o cenário hipotético, e de que a minha intenção era criticar o método e não a análise, pois essa análise não tinha ocorrido. E ele insistiu com a ideia tola de que eu estava a fazer declarações falsas e a pôr palavras na boca dele. Foi aí que se lembrou de dizer que se iria tornar mais activo na moderação de comentários, alegando que a inteligência das pessoas que visitam o Jogo Directo ficaria a ganhar com a censura das minhas mentiras.

Rei de Copas: E achas que essa foi uma estratégia de evasão?

Nuno: Evidentemente. Aliás, o truque não é novo. Já não é a primeira vez que a sua estratégia argumentativa se reduz à tentativa de defesa através do desmentido. Muitas vezes, quando discutimos, a conversa acaba com ele a afirmar que eu estou a pôr palavras falsas na sua boca e que não estou a compreender o que ele está a dizer. Considero-o uma pessoa inteligente, mas este tipo de truque era escusado. Fá-lo porque não lhe interessa continuar a discussão e quando sente que não tem ou não lhe apetece pensar em argumentos. Desta vez, só foi um pouco mais longe e, depois de insistir no truque do costume de dizer que eu estava a inventar coisas que ele não tinha dito (coisa que eu próprio assumi desde o início e que fiz questão de salientar), decidiu acabar a conversa ameaçando censurar o comentário seguinte, assim como todos os que, daqui para a frente, não lhe interessassem.

Rei de Copas: E o que lhe dizias no comentário censurado?

Nuno: Repeti que não estava a inventar coisas que ele não dissera, mas antes a utilizar o seu método de análise para avaliar eu o rendimento de um jogador. Insisti que estava a criticar o método e não a criticar a sua análise, pois ele não a fizera. E disse-lhe, por fim, que, apesar de a opção da censura ser obviamente um direito seu, não deveria justificá-la com a inteligência dos seus leitores, pois os seus leitores, se fossem de facto inteligentes, facilmente percebiam que eu não estava a inventar coisas que ele não tinha dito, como ele alegava.

Rei de Copas: Achas então que a censura não se deveu à necessidade de proteger a inteligência dos seus leitores e a sua honestidade?

Nuno: Isso é evidente. Qualquer pessoa o percebe.

Rei de Copas: Deveu-se a quê, então?

Nuno: À incapacidade de argumentar. Tenho insistido bastante com as limitações do método e ele até assume essas limitações. Mas como quer defender a utilidade do método, tem de ignorar essas limitações. Quando fica incapacitado de defender essa utilidade, perante a evidência da falácia em que consiste, não tem outra solução senão recorrer a estratégias fáceis, como seja aquela de dizer que eu invento coisas que ele não disse, ou a menos honrada de censurar o comentário.

Rei de Copas: Sentes-te de algum modo atingido por não te permitirem contra-argumentar?

Nuno: Não. Não sou pessoa de ficar afectada com golpes baixos. A indignidade atinge apenas aqueles que a praticam. Acho que quem perde alguma coisa com a recusa do debate são as pessoas que o acham interessante e ele próprio, que poderia evoluir com as críticas. Ele, no entanto, entende as minhas críticas como um ataque inútil. E é isso com o qual não concordo. Concordo que seja um ataque e até concordo que seja provocador. Aquilo com que não concordo é com a sua inutilidade. A minha capacidade argumentativa, como a capacidade argumentativa de qualquer pessoa, constrói-se com o treino a que se é submetido pelos ataques que nos fazem. Eu, ao contrário da grande maioria das pessoas, gosto que ataquem as minhas ideias, sobretudo se os argumentos com que o fazem forem fortes. É com a força dos argumentos contrários que o meu pensamento e as minhas ideias evoluem. E quanto mais frontal, desde que honesto, for o ataque, melhor. É isto que ele não entende. É que, apesar da frontalidade, da provocação, da ofensiva do ataque, trata-se de um ataque honesto, isto é, fundado em argumentos. E ele teria muito a ganhar se optasse por contra-argumentar, em vez de fugir à argumentação. Mas são opções. Como é opção dele, de há uns tempos para cá, deixar cada vez mais que as suas análises sejam influenciadas pelos números e menos pela interpretação.

Rei de Copas: Achas, portanto, que as análises feitas no Jogo Directo têm menos interesse, hoje em dia, do que tinham?

Nuno: Acho que são mais redutoras. O Filipe pensa que progrediu, ao ter números a suportar as suas análises. Mas está enganado. É que, apesar de poder falar com mais conhecimento de causa em relação a certas coisas - e isso é um facto - perdeu de vista coisas importantes.

Rei de Copas: E que coisas importantes foram essas?

Nuno: Ao basear a sua análise em números, talvez tenha arranjado maneira de comprovar que um certo jogador é forte num determinado aspecto do jogo e fraco noutro, mas deixou-se levar por uma tendência de análise que consiste em entender o rendimento de um jogador como uma soma de atributos. Para ele, o rendimento é igual ao somatório dos vários aspectos do jogo. Com isto, perdeu de vista algo muito mais importante, que tem que ver com a relação entre cada um desses aspectos. O rendimento do Maniche é obtido através da soma de percentagem de passes completados, desequilíbrios ofensivos, perdas de bola, recuperações, remates, etc. De fora desta história ficam várias coisas. À cabeça, coisas que se fazem sem bola: posicionamento, movimentação, desmarcação, capacidade de fornecimento de apoios. Mas fica de fora também a tomada de decisão, que em futebol vale mais do que o efeito de cada decisão. O Filipe contabiliza factos, quando na verdade deveria contabilizar intenções. É por isso que a adopção do método o afastou do que verdadeiramente importa. Compenetrado com os números, perdeu de vista coisas muito mais importantes.

Rei de Copas: É esse o teu argumento contra as estatísticas, em geral?

Nuno: Em parte, sim. O problema de deixar que as estatísticas expliquem os fenómenos, numa coisa que depende de intenções, como é o caso do futebol, é que normalmente explicam apenas os resultados e não as tendências que conduziram a esses resultados. Explicar rendimentos através de factos seria o mesmo que explicar a qualidade de uma obra de arte pelo número de pessoas que visitou a galeria em que ela se encontra exposta. A qualidade da arte não depende de coisas contáveis, não por ser arte, mas por ser qualidade. Não depende da opinião das pessoas, não depende da perfeição técnica, não depende do domínio do medium, não depende de nada que seja mensurável. Não existe, em arte, uma pedra de toque através da qual se possa aferir a qualidade de uma coisa. Depende, isso sim, da potencialidade descritiva da obra, das ideias do autor, do interesse dessas ideias, etc. Em futebol, passa-se o mesmo. Não existe uma pedra de toque com que possamos contabilizar a qualidade com que um jogo foi jogado. Ao criar um método que pretende eliminar parte da análise descritiva, um método que, não sendo assumidamente perfeito, tem a pretensão de aproximar a análise da verdade, o Filipe está a tentar inventar uma pedra de toque através da qual possa medir, com maior ou menor grau de erro, uma coisa que não é mensurável por natureza. O que o método dele pretende é eliminar a análise descritiva e transformar números em evidências. Isto, em futebol, é altamente falacioso. A sua formação matemática diz-lhe que a estatística ajuda a perceber melhor tendências. O que ele não entende é que os fenómenos cujas tendências as estatísticas podem explicar não são fenómenos como o futebol. No futebol, a matemática e as estatísticas não têm nem podem ter a mesma capacidade explicativa que têm noutras áreas. A minha reacção contra as estatísticas deriva da convicção de que, em futebol, elas são sempre uma tentativa frustrada e simplista de resolver a complexidade inerente ao jogo. No fundo, o que as estatísticas fazem é tentar tornar quantitativo o que não pode deixar de ser qualitativo. E isso é absurdo.

Rei de Copas: A tua analogia com a arte é muito interessante. Queres falar um pouco dela?

Nuno: Posso falar. Ninguém no seu perfeito juízo achará que pode medir a qualidade - digamos - da Noite Estrelada de Van Gogh ou da Für Elise de Beethoven. Essa qualidade só pode ser descrita, nunca medida. Até uma certa altura, a pintura era essencialmente representação e a qualidade de uma pintura dependia em muito da sua capacidade representativa. De certo modo, o mundo visível era uma pedra de toque para aferir a qualidade da obra. Mas o Impressionismo acabou com isto. A qualidade não depende da sua capacidade de imitar ou representar o real, como não depende da perfeição técnica, de aspectos formais, etc. A qualidade está na imaginação do artista no momento da pintura. Para descrever qualitativamente a Noite Estrelada, é necessário descrever as intenções, as ideias e as preocupações de Van Gogh, a aquisição técnica e conceptual que lhe permitiu aquela pintura, a relação, no fundo, entre as propriedades manifestas no quadro e aquilo que era a figura do seu autor. Estas coisas não são contáveis; podem apenas ser descritas. Em futebol passa-se o mesmo. Tal como, para perceber a qualidade da Noite Estrelada, é muito mais importante descrever relações entre o que é visível e as intenções do autor do que reparar em coisas visíveis, em futebol é muito mais importante descrever as intenções, as ideias e as opções do Maniche do que contar a quantidade de passes que ele conseguiu.

Rei de Copas: E queres dar exemplos de aspectos estatísticos que, segundo o que defendes, não podem servir senão para perceber coisas supérfluas?

Nuno: Bom, já falei de alguns, como seja a percentagem de passes completados. Não queria falar disso em profundidade, pois um amigo de longa data está a preparar um texto sobre a falácia das estatísticas, que será publicado, se tudo correr bem, nos próximos dias, mas posso referir exemplos. Remates à baliza, por exemplo. No método do Filipe, a quantidade de remates à baliza influencia o rendimento do jogador. O erro implícito é grosseiro. Qualquer remate, para ele, é qualitativamente relevante. Isto não faz sentido nenhum. Um jogador que remate cinco vezes de meio-campo tem um rendimento, a nível de remates, idêntico a um jogador que rematou cinco vezes à entrada da área. Um remate em desequilíbrio, sem ângulo, numa situação de três para um, é qualitativamente igual a um remate em condições privilegiadas, em zona frontal, sem oposição, quando não tem nenhum colega melhor colocado. E por aí fora. O mesmo se passa com recuperações de bola. O jogador que faz a intercepção fica com os louros todos, quando muitas vezes é um colega que força, pela pressão que exerce, o adversário a fazer mal o passe. No método do Filipe, uma intercepção por boa leitura de quem intercepta tem tanto valor como uma intercepção por mau passe do adversário. Um jogador que tenha a sorte de estar na zona por onde o adversário mais ataca terá, à partida, mais condições que os colegas para ter mais recuperações de bola. Além disto tudo, há ainda que perceber que custos, sobretudo em termos de organização defensiva, terá tido cada uma das recuperações de bola de um jogador. Nada disto é contemplado pelas estatísticas. Poderia falar de muitos mais exemplos, pois nenhum aspecto estatístico está isento de falhas deste tipo, mas estes dois chegarão. Há, ainda, no entanto, um outro problema, que tem a ver com o critério de selecção dos aspectos relevantes. Como é que se decide que um remate é relevante para aferir o rendimento de um jogador e um lançamento de lateral não é? É uma pergunta justa. E a única resposta possível é: bom senso. E aqui entra um lado não-quantitativo da coisa que entra em contradição com a pretensão científica do método. É que todo o método, que se pretende o mais científico possível, depende da sua não-cientificidade.

Rei de Copas: Mas o Filipe assume que a análise estatítisca é apenas um instrumento e que carece de interpretação.

Nuno: Assume, mas só para o que lhe dá jeito. E, ao assumi-lo, fica com um problema grande entre mãos. É que, se os números carecem de interpretação e, por si só, não servem de muito, então os números não têm poder explicativo. Se não têm poder explicativo, não podem ser usados como pedra de toque para aferir nada, não podem servir de arma de arremesso para validar interpretações e não podem servir de argumento para desvalorizar outras interpretações. O problema do Filipe é que quer duas coisas que se excluem mutuamente: a cientificidade dos números e a interpretação deles. E quere-as por razões diferentes. Quer, por um lado, que os números legitimem a sua interpretação, e nesse sentido diz que eles são apenas instrumentos; mas quer também que os números tornem ilegítimas interpretações diferentes das suas, e aí os números já são ciência exacta. Na verdade, o método do Filipe é uma tentativa pobre e desonesta de se auto-legitimar.

Rei de Copas: Tens algum exemplo com que possas ilustrar isso?

Nuno: Sim. Recentemente, o seu método avaliou o Guarín muito positivamente. Apesar disso, o Filipe considera que o Fernando é melhor para o lugar, pois é melhor a nível posicional. Neste caso, o Filipe ignorou a tendência estatística, assumindo a limitação do método, explicando a opção por questões que o método não contempla, como seja a responsabilidade táctica e o sentido posicional do Fernando. Devo dizer que concordo inteiramente com o Filipe. O problema é a incoerência. Neste caso, o Filipe teve lucidez suficiente para perceber que o Guarín é inferior ao Fernando em certas coisas importantes que não podem ser contabilizadas. Mas, noutros casos, o método funciona como ciência exacta e os números servem para objectar opiniões que se fundam em coisas que também não podem ser contabilizadas. Desde logo, o exemplo do Maniche. O meu argumento em relação ao Maniche era semelhante ao argumento do próprio Filipe em relação ao Guarín e ao Fernando. O que eu defendia era que os números do Maniche não significavam, por si só, que ele merecesse o aplauso largo que ele lhe concedia, da mesma forma que os números do Guarín não justificavam, por si só, que fosse melhor para o lugar que o Fernando. Para que o Maniche merecesse tal coisa, havia que falar de coisas de que o Filipe não falava, coisas que o método não pode contemplar. Nesse caso específico, o Filipe não aceitou a interpretação. No caso do Maniche, os números representam fielmente o seu rendimento e ele não admite outra interpretação. No caso do Maniche, o sentido posicional e a responsabilidade táctica nem sequer são relevantes para aferir a sua qualidade. Isto é uma incoerência primária. Poderia ainda falar da questão do Javi Garcia. Ultimamente, tem argumentado o Filipe sistematicamente que o Airton desempenha a posição com qualidade e que merecia a titularidade, por não perder tantas bolas como o espanhol. Mais uma vez, está a basear a sua opinião somente nos números. Está a esquecer coisas importantes, coisas que ele próprio não esquece noutras ocasiões. Está a deixar de lado, em primeiro lugar, as opções de passe dos dois. Para aferir se o Airton perde mais ou menos bolas que o Javi, não basta contar as perdas de bola; é necessário também perceber as opções de passe dos dois, o grau de risco adoptado, a restante estrutura colectiva, etc. Depois, é necessário também observar coisas como o sentido posicional, coisas como a capacidade de leitura dos lances e a velocidade com que os jogadores se reposicionam, etc. E, finalmente, uma coisa que o Filipe tanto gosta, o aspecto mental: o Javi Garcia é mais adulto e acusa menos a pressão que o Airton, é mais experiente e sabe melhor em que situações, por exemplo, pode e deve fazer falta. Todas estas coisas ficam de fora na observação do Filipe. Não quero com isto defender nada em relação ao Javi e ao Airton. Estou apenas a discutir as razões numéricas que servem o argumento do Filipe.

Rei de Copas: E a questão do Belluschi?

Nuno: Pois, o Filipe acha que descobriu a pólvora, ao afirmar que o Belluschi, ao contrário do que se pensava, é muito forte em termos defensivos, recuperando muitas bolas. E é um dos exemplos que mais gosta de dar para justificar a relevância do método. A meu ver, trata-se de uma trivialidade. Já há um ano que o Entredez defendia que o Belluschi não era fraco em termos defensivos. O argumento não era necessariamente o mesmo, ou seja, o de que recupera muitas bolas, mas isso não importa. Já o dizíamos, como o dizemos em relação a outros jogadores, normalmente os criativos, que, por serem criativos, geram o preconceito de serem fracos defensivamente. Quase nenhum o é. Mas, mais importante do que afirmar que a descoberta do Filipe não foi descoberta nenhuma, pois já havia quem o defendesse antes, é afirmar que a descoberta do Filipe é um disparate. É que, para ele, as recuperações de bola de um jogador, seja o Belluschi ou outro qualquer, é sinal inequívoco de que exerce um trabalho defensivo relevante. O que ele esquece é que esse jogador está inserido numa determinada estrutura colectiva, estrutura essa que pressiona de uma determinada forma. Não será alheio aos números do Belluschi, por exemplo, o facto de ter ao seu lado um jogador muito forte em termos de agressividade e ocupação de espaços, como seja o Moutinho. A minha opinião é que, parte dos números do Belluschi se explicam melhor pelo trabalho colectivo do que propriamente pelo desempenho individual. O Belluschi recupera muitas bolas porque é inteligente, porque se posiciona bem, porque lê bem os lances, porque é suficientemente agressivo e ocupa suficientemente bem os espaços defensivos, mas também porque o Porto pressiona de um modo específico que conduz a mais recuperações na sua zona. E esta segunda parte da explicação o método do Filipe não é capaz de perceber.

Rei de Copas: Para ti, portanto, o método estatístico do Filipe é um perfeito disparate?

Nuno: Acho que pode ajudar a perceber tendências, mas nunca a explicá-las. E jamais pode funcionar para aferir rendimentos individuais. Há demasiadas coisas que não podem ser contempladas senão pela análise descritiva.

Rei de Copas: E o que tens a dizer em relação à pretensão do Filipe de que um método estatístico, parecido com o seu ou não, ajudaria necessariamente as equipas a estarem mais conscientes das suas necessidades e a perceberem melhor o rendimento individual dos seus atletas?

Nuno: Isso sim, acho um perfeito disparate. Há coisas muito mais importantes a considerar para que uma equipa possa potenciar o seu colectivo do que propriamente perceber quantas bolas um jogador perde e quantas bolas ele recupera. A potenciação das equipas dependerá de uma melhor percepção dos comportamentos dos seus jogadores e de uma melhor percepção do seu comportamento colectivo, não da percepção daquilo que cada jogador fez ou deixou de fazer.

Rei de Copas: Gostavas que o Filipe fizesse alguma coisa em relação ao seu método?

Nuno: Não tenho nada a ver com o que ele faz. Mas, já que falas nisso, gostava a sério que ele o utilizasse para analisar um jogo do Barcelona. A prazo - como ele diz que todos aqueles números devem ser lidos - iria talvez perceber que não poderia chegar a conclusões nenhumas. Iria talvez perceber que Xavi e Iniesta têm uma percentagem de passes completados inferior à dos outros médios e perdem mais bolas que Busquets e até do que Mascherano e Keita, embora isso não os faça necessariamente descartáveis. Iria talvez perceber que Puyol perde menos bolas que Piqué, e que isso não faz dele um defesa necessariamente mais fiável em posse. Iria talvez perceber que os desequilíbrios ofensivos são repartidos quase igualmente pelos cinco jogadores mais adiantados, e que isso complicaria a distinção individual que gosta de fazer. Iria talvez perceber que não há diferença significativa entre o número de passes completados pelo Mascherano e o número de passes completados pelo Busquets e que Busquets perde mais bolas que Mascherano, embora a titularidade de Busquets não possa sequer ser posta em causa. Uma análise ao Barcelona poderia servir para ele perceber a inutilidade em que consiste o seu método. Ou então não. A casmurrice é tanta que era capaz de inventar desculpas para as coisas esquisitas que encontrasse.

Rei de Copas: A tua relação com o Filipe é cada vez mais tensa?

Nuno: Não acho que tenhamos uma relação. Aliás, deixa-me aproveitar para falar de um assunto sobre o qual muitos têm uma opinião que considero errada. As pessoas falam muito de cordialiidade e de boa educação. Acham que eu tenho um estilo deselegante e, mesmo que reconheçam importância ao que digo, aconselham invariavelmente a ser mais moderado no modo como exponho as minhas ideias. Devo dizer que essas pessoas não percebem bem aquilo que eu faço. Interessa-me pouco cultivar amizades; isto não é a minha vida. As intervenções em blogues, a exposição das minhas ideias neste blogue, a minha existência cibernáutica, no fundo, não tem nada a ver com a minha vida. O meu interesse é inteiramente intelectual. E, por sê-lo, deve estar o menos constrangido possível por convenções sociais. As pessoas imaginar-me-ão sempre como alguém muito irritado à frente do computador, como alguém muito febril, que se entusiasma muito com as discussões. Não sou nada disso. Se disser que, no dia-a-dia, sou uma pessoa extraordinariamente diplomática, calma e muitíssimo bem-educada, cordialíssima, que não ostenta qualquer tipo de arrogância nem tem opiniões fortes sobre praticamente nada, poucos acreditarão. E não acreditarão sobretudo porque não percebem aquilo que eu faço aqui. O meu interesse aqui é discutir, expor ideias, tecer argumentos, ouvir opiniões diferentes e procurar rebatê-las. O meu interesse é cultivar-me, e isso faço-o pelo exercício exaustivo da discussão, pelo esforço mental de procurar respostas para todos os problemas. É precisamente porque o que me interessa é a discussão e só a discussão que assumo o estilo que assumo. Isto porque a discussão tem tanto mais interesse quanto mais controversas forem as propostas. A minha falta de cordialidade, a minha postura acusativa, a minha arrogância, a minha ironia, tudo aquilo que as pessoas, no fundo, acham que eu sou é uma fatalidade do meu único interesse, que é discutir. O carácter desta entidade que escreve e assina como "Nuno" não é o carácter da pessoa real que lhe dá corpo, mas uma consequência necessária dos interesses que essa pessoa tem ao escrever nestes espaços sobre estas coisas. É por isso que não faz sentido achar que devo respeito às pessoas com quem falo. É que eu não falo, verdadeiramente, com elas. A personalidade que é resultado dos meus interesses em falar destas coisas é que fala com elas. Trata-se de uma máscara. E eu, na verdade, não tenho controlo sobre o que ela diz, pois o que ela diz é consequência dos interesses intelectuais e do interesse na discussão que, esses sim, possuo.

Rei de Copas: Pois, para mim, que te conheço, isso é claro. Obrigado, Nuno, por esta extensa conversa! E até uma próxima oportunidade...

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

As Trivialidades de Carlos Manuel

Carlos Manuel, ex-jogador de futebol de alguma reputação, treinador modesto e comentador assíduo de jogos de futebol, é um bom exemplo de como ter sido jogador de futebol não é condição prévia para poder falar sobre o jogo. Muito menos o é para ter emprego relacionado com o jogo. As suas opiniões - esquecendo a sua obsessão com Vukcevic, que faz adivinhar um ódio particular que só as crianças, os frustrados e os psicóticos possuem - são invariavelmente fracas e erradas. Hoje, quando Carlos Manuel comentava o jogo que opunha o Benfica ao Olhanense, percebi também que são triviais. A trivialidade de que quero falar aqui ocorreu sensivelmente a meio da primeira parte: Toy recebeu um passe na esquerda, sem qualquer apoio por perto, e Maxi Pereira, entrando com agressividade em excesso, cometeu uma falta desnecessária. A opinião de Carlos Manuel foi de que Maxi tinha feito bem, independentemente de ter sido ou não falta, pois é dever de todo o jogador estar o mais perto possível do portador da bola, de modo a não o deixar pensar. A trivialidade da coisa é quase obscena. E só não merece maior protesto porque, além de trivial e de fazer parte das ideias preconcebidas da grande maioria dos que pensam que percebem alguma coisa de futebol, é absolutamente absurda. Trata-se de um preconceito e de uma generalização sem qualquer fundamento.

Se é evidente que, quanto mais perto o defesa estiver, menos tempo o portador da bola tem para pensar, não é menos evidente que menor capacidade de reacção tem também o próprio defesa. Estar perto do portador da bola pode fazer com que este tenha menos tempo para pensar, mas também retira tempo e espaço de manobra a si próprio. Além disto, é importante perceber ainda que esta não é uma teoria geral e depende muito das características do portador da bola. Se se trata de um jogador tecnicamente muito evoluído, estar sempre em cima dele pode ser especialmente errado. Do mesmo modo, é preciso ver o lance em si. Se se trata - como se tratava - de um lance em que o portador da bola não tinha qualquer apoio próximo e estava junto à bandeirola de canto, aproximar-se dele e assumir uma postura agressiva é francamente desnecessário.

Carlos Manuel - que acabou de dizer, na sequência do golo de Sálvio, que "isto tem a ver com o momento que o jogador tá" - além de usar o verbo "tar" e não saber o que é uma regência verbal, não percebe estas coisas. Para ele, um lance junto à linha é igual a um lance no meio-campo; um lance protagonizado por Messi é igual a um lance protagonizado por Luisão. Para ele, a postura defensiva de qualquer jogador, em qualquer situação, deve ser o mais agressiva possível. Para ele, defender é cerrar os dentes, morder a língua e correr atrás da bola e dos adversários que a têm. É incapaz de perceber que o jogo é jogado por seres humanos e estou até desconfiado de que não acredita que jogadores de futebol, como quaisquer seres humanos, têm neurónios e devem, além de correr e salivar atrás de adversários, pensar. O seu pensamento é de tal modo primitivo e quadrado que os seus jogadores ideais devem ser os que ganham ao braço de ferro e os que têm por meio de transporte preferido a liana. É por estas e por outras que ele e muitos outros artistas como ele não percebem um chavelho daquilo de que fazem profissão. O futebol lamenta, é certo, mas a verdade é que, sem palhaços, o circo não tinha a mesma graça.

segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

Fabregas, Nasri e a Importância do Passe Vertical

A expressão "passe vertical", que encontra uso habitual neste blogue, não faz parte - ou não fazia, até há muito pouco tempo - do vocabulário futebolístico. Utilizei-a inicialmente para distinguir uma espécie de passe particular, um passe rasteiro com progressão, ou seja, um passe feito pelo chão que não se limita a fazer a bola circular à roda do bloco defensivo adversário, mas que penetra nele, ultrapassando algumas das suas linhas. Hoje em dia - penso - o rótulo fixou-se no imaginário de quem fala de futebol, e quando se fala de um "passe vertical" já não se confunde com um passe feito pelo ar, hábito, por exemplo, de uma equipa que faça muito jogo directo, nem com passes para as costas da defesa. O que, neste texto, procurarei demonstrar é a importância crescente que, no futebol moderno, este tipo de passe tem. É minha convicção que as melhores equipas em ataque organizado são também aquelas que mais e melhor procuram estas situações e, como tal, depressa será assunto de reflexão pelos grandes treinadores mundiais.

A equipa que, em todo o mundo, melhor usa este recurso é o Barcelona; a segunda o Arsenal. É precisamente recorrendo a um golo dos gunners em que se fez uso do passe vertical que procurarei sustentar o argumento. O lance é o do segundo golo frente ao Birmingham, este fim-de-semana. Cesc Fabregas apercebe-se da localização de Nasri à sua frente, entre linhas adversárias, e mesmo tendo atrás de si um adversário, direcciona-lhe a bola. Ao fazê-lo, ultrapassa imediatamente uma linha, composta por dois adversários. O facto de aquele que vai receber a bola estar marcado é pouco importante. Um passe vertical pelo chão torna a acção do defesa mais difícil e uma simples devolução ao colega que em primeiro lugar passara a bola permite à equipa preservar a posse de bola. Também por isto, um passe vertical não é um passe tão arriscado como, por exemplo, um passe para as costas da defesa, e só não é tão usado porque se convencionou que passar a bola para colegas que têm adversários por perto é errado. Ora bem, não é. Pode até ser muito útil, pois fará com que os adversários que ocupam esses espaços adquiram a ilusão de que podem capturar a bola e se desposicionem. O que aconteceu de seguida demonstra bem a utilidade que há em fazer um passe destes mesmo nas condições em que o colega se encontrava. Nasri, embora apertado, devolve de primeira a bola a Fabregas, que no momento imediatamente a seguir a ter feito o passe se dirigiu para Nasri, para fornecer um apoio curto. Com essa movimentação, pode receber a devolução de Nasri à frente de um dos dois adversários que o tinham apertado inicialmente. Nasri, ao devolver, desmarcou-se nas costas do seu marcador que, iludido pelo engodo da bola, acabou por ficar batido. Fabregas, por sua vez, deu de primeira novamente para Nasri, que ocupara agora um espaço frontal entre o homem que lhe saíra ao encalço e a linha defensiva do Birmingham. Estava criado o desequilíbrio. Um passe vertical e uma tabela foi tudo do que o Arsenal precisou para arranjar condições de remate à entrada da área. Parece simples. O problema é que os hábitos que se cultivam ao longo da carreira e as coisas em que esses mesmos hábitos fazem os jogadores acreditar impedem, muitas vezes, de perceber como se pode simplificar um lance.



Com um passe vertical e uma pequena combinação entre dois jogadores, o Arsenal ultrapassou todo o meio-campo do Birmingham. Este tipo de penetração é utilíssimo, em futebol, mas continua a ser pouco usado, ou usado inconscientemente. Há pouquíssimas equipas que procuram de modo sistemático estas acções e menos ainda as que trabalham de modo a potenciar esses lances, tendo preocupações não só em progredir desse modo, como também em criar movimentações que facilitem a acção aos jogadores envolvidos nessas situações. Creio, contudo, que o futuro tratará de corrigir isso. Tão importante como rotinar, por exemplo, uma transição ofensiva, será treinar o comportamento colectivo de modo a criar mais e mais condições para se efectuarem passes verticais. Aliás, a compreensão do modelo de Guardiola teria de passar, entre muitas outras coisas, por perceber como o passe vertical é, no seu Barcelona, um instrumento fundamental. Como acho que, em dez ou vinte anos, este Barcelona será um modelo a imitar por todos, creio também que o passe vertical virá a ser objecto de maior reflexão e dedicação.

P.S: E o que dizer do terceiro golo do Arsenal? Novamente, Fabregas e Nasri no lance. Desta vez, recreando-se como se não tivessem mais colegas em campo, trocando a bola apenas entre os dois, pondo à rabia todos os adversários que lhes saíram ao caminho. Este tipo de entendimento entre dois atletas, estendido depois ao resto da equipa, deveria ser uma das maiores preocupações de um treinador. Mais sobre isto noutra altura, quem sabe se brevemente.

P.S. 2: E o jogo de Dani Parejo, esta noite, coroado com um golo magnífico? O rapaz tem classe até a andar, mas continua relativamente esquecido numa equipa do meio da tabela em Espanha. Há poucos, porém, com a qualidade que ele tem. Pouquíssimos, mesmo. Se se pensar, então, que, no início da temporada passada, foi trocado por Granero, dá quase vontade de cortar os pulsos...